sexta-feira, fevereiro 05, 2010

O Mandela de Invictus nada sofre e tudo perdoa

Li na internet o comentário de alguém que dizia que o filme Invictus, sobre os primeiros anos de Nelson Mandela como presidente da África do Sul e sua luta para unir brancos e negros, é uma história tão bonita que parece ficção. Sinto-me como aquele adulto que tem a difícil missão de contar a uma criança a (triste?) notícia de que Papai Noel não existe, mas eu preciso dizer: ora, parece ficção porque é ficção.

Justiça seja feita: Morgan Freeman, no papel de Mandela, atingiu um nível tal de atuação que quase esquecemos que é ele que está na tela - o que não acontece com um Jack Nicholson, por exemplo, que só consegue fazer papel dele mesmo. Clint Eastwood, como sói acontecer, demonstrou sobriedade na direção, domínio do formato com que se propôs a trabalhar, leveza ao tratar de um tema controverso que poderia gerar um filme desnecessariamente violento (o foco era o time de Rugby, não a violência). Ponto para ele. Mas o didatismo eastwoodiano começou a incomodar com menos de meia hora de filme. Todas as cenas parecem ter sido idealizadas para explicar alguma coisa bem explicadinha. O pano de fundo foi logo dado na primeira narração em “off”, as personagens foram apresentadas nos primeiros 15 minutos, cada uma representando diferentes grupos sociais ou ideológicos. Criou-se o primeiro conflito aos 20 minutos e o primeiro ponto de virada entre os 30 e 40 minutos de narrativa (sim, foi tão óbvio que olhei no relógio). É por isso que o moço disse que a história parece ficção. Parece não; é!

Naturalmente, quem conta uma história escolhe quais partes irá contar, o que vem sendo feito desde que o mundo pariu os primeiros contadores de histórias. Não tem como ser diferente. Portanto, é claro que o bom mocismo hollywoodiano exigiria um recorte adequado. Mas é justo aí, onde começa a história bonita do filme, que começa também minha tristeza: o tema principal, que é o perdão, foi tratado de uma forma tão simplista que corre risco de tornar-se uma abordagem nociva, por ter pouco parentesco com a realidade, embora clame para si o status de retrato do real. Exagero meu? Tomara que sim!

Qualquer ser humano que tenha tido uma experiência honesta com Jesus (Nelson Mandela é cristão) sabe que o perdão é possível, mas não brota da noite para o dia. É um exercício tantas vezes amargo. Sabendo que é um ser humano e não um semideus, imagino que o verdadeiro Nelson Mandela deve ter engolido sapo atrás de sapo, deve ter dado muitos sorrisos xaroposos na hora de apertar a mão daqueles que por tanto tempo maltrataram sua pele negra, sua existência negra - e de seus irmãos. Mas aquele Mandela que vi no filme Invictus não possui dúvidas, não se abala, não sofre de amargura nem de ressentimento. Acho até que o próprio Clint Eastwood percebeu o exagero. Para tentar balancear, colocou na boca de um dos seguranças do presidente um discursinho dizendo que Mandela é um ser humano normal, com problemas de gente comum (ah, bom, porque eu já estava quase achando que ele fosse infalível). O único conflito pessoal que parece atingir Mandela é o de sua família que o abandonou porque não compreende sua "alma perdoadora".

O público acha lindo, bate palma, chora, sai do cinema disposto a perdoar. Mas haverá aqueles que desistirão diante do primeiro obstáculo, afinal, quem poderia ter uma alma tão perdoadora a não ser um homem iluminado como Mandela, um semideus que não se abala diante de nada? Talvez eu esteja equivocada, mas eu realmente acho e quero acreditar que, na vida real, o caminho do perdão escolhido por ele exigiu muita meditação, entrega e autonegação. Um processo baseado em disciplina, confiança em Deus, mas também discussões com o Altíssimo, e, por fim, rendição. E, na manhã seguinte, e na manhã que se seguiu à manhã seguinte, e ainda hoje, rendição, dúvidas, raiva, rendição.

Quanto mais normal eu conseguir imaginar Mandela, mais ele será meu herói: alguém que levou às últimas consequências o que Jesus disse: "Quem quiser me seguir negue-se a si mesmo tome a sua cruz". Perdoar às vezes é como pregar-se na cruz. Sim, perdoar é desistir de um direito - olho por olho, dente por dente - para que o outro viva. Mas, se perdoar é negar-se, entregar-se, render-se, é preciso lembrar que somente depois da cruz é que vem a ressurreição. O resto é passe de mágica, é misticismo barato.