segunda-feira, julho 18, 2011

É difícil perdoar. Porque, estando chateada, necessariamente penso que eu teria feito diferente. E acredito que a minha forma teria sido melhor que a do outro. Assim, o não perdão é uma forma de me imaginar superior. Para me libertar de tal devaneio, só mesmo enxergando que ninguém, absolutamente ninguém consegue passar pela vida sem que, em algum momento, precise também mendigar um olhar de perdão.

quinta-feira, junho 23, 2011

Amizade em quatro tempos

Passei o ano de 2008 vivendo em Santiago do Chile. Faltando menos de dois meses para meu retorno ao Brasil, recebi a visita de um casal de amigos: o Kico, a quem chamo de irmão, e a Dani, a quem chamo de cunhada. Em uma conversa na varanda, Kico e eu olhávamos a Cordilheira que se estendia quase infinita diante de nós. Em uma semana, meu amigo havia entendido o que era meu mundo lá. Andou pelas ruas comigo, bebeu com meus amigos, conversou com a cidade e caiu de amores por minha segunda pátria. Enquanto conversávamos sobre minha volta, ele viu toda a tristeza em meus olhos, dor que até tentou sair em um suspiro, mas estava presa. Kico atravessou um braço sobre meu ombro, suspirou também, mirou a Cordilheira e disse algo que me acompanha desde então, em todas as minhas despedidas: “Esta dor que você está sentindo é muito melhor do que a dor de não sentir nada”.
Ainda é, querido Kico. Ainda é.

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Em uma noite quente de fim de verão, passei algumas horas conversando com outro casal, o pastor Alexandre Robles e sua esposa Mariane Robles, em uma chamada de vídeo. Falamos sobre futebol, música e cinema, contamos casos da roça, até que começamos a conversar sobre vocação ministerial. A maneira como Alexandre falava me pareceu uma dança de palavras vivas, acesas, e de repente tudo fez muito mais sentido. Senti aquela paz que não se explica, terminei a conversa carregando um fardo mais leve. Depois que nos despedimos, quis escrever. Escrevi aos dois:
“Hoje, olhos de amor me ajudaram a escolher o que é certo, a enxergar uma trilha a seguir. E foi assim, sem planejar, sem fazer força, que vocês dois me apontaram um caminho de verdade que vai dar no mar, ou bem pra lá do mar: lá onde começa o céu.”
Poucas horas depois, veio a reposta:
“Isso nos dá esperança de que sempre vale a pena seguir a força dos rios da comunhão, pois eles acabam nos mares da eternidade.”
Fechei os olhos e imaginei muitos barquinhos navegando lado a lado, conduzindo entre as margens do rio meus muitos amores.

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No domingo de Páscoa, tivemos um café da manhã especial. Éramos uma turma de amigos em uma pequena vila no alto de uma montanha, de onde se viam os mares de morros de Minas Gerais, perto da cidade de Ouro Preto. Nossa celebração pascal diante daquela mesa farta e de amigos cheios de gratidão marcou minha vida cristã e ilustrou a palavra ressurreição. Naquela mesma noite, de carro pela cidade, minutos antes de me despedir do amigo André da Mata, que voltaria a São Paulo, começamos a falar de amor e de como precisávamos de cura para antigos sentimentos. André me lançou um olhar terno e completou todo aquele dia de celebrações: “Se você não acredita que poderá viver um novo amor, então é porque não conhece o poder da ressurreição.”
Sem ter o que dizer, teci um casulo macio e guardei o verso dentro.

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Eu estava conversando com meu amigo Laion Monteiro e relembrávamos exatamente o tal domingo de Páscoa, quando cheguei em casa e nos encontramos na internet e falamos sobre esperança. Contei o que o André havia dito sobre o poder da ressurreição e o que o Alexandre Robles havia escrito sobre ressurreição (“Para que a morte nunca seja a última notícia”). E assim, bem naturalmente, como é próprio das pessoas que exalam poesia, Laion disse: “Sim. Creio na ressurreição da carne também por causa de minhas saudades. Impossível tudo terminar assim tão quase.” Não pude vê-lo, mas imagino que seus olhos tenham-se virado para o lado, onde estava sua namorada, minha amiga Priscila Seabra. Apesar de tanto amor, os dois vivem de poucos encontros e muita saudade. Mas este não há de ser o fim, nem o riso eterno há de morar tão longe assim.

Tem um céu que é feito de estrelas, planetas, camadas de gases e o infinito atrás. E tem outro céu que é feito de casos, abraços, camadas de amigos e o Infinito em nós.

06/06/2011

segunda-feira, maio 30, 2011

Capitu 1991-2007



Capitu foi a cadelinha mais fantástica que conheci. Em 16 anos conosco, nunca deixou de ser novidade. Até nos truques velhos, despertava um novo encanto. Já viu cachorro brincar de pique-esconde? A nossa! E, quando era jovenzinha, passava as tardes vendo a vida na janela. Capitu foi nossa companhia em madrugadas de porre, consolo em noites de choro, brincadeira em domingos de festa. Eu vou morar com a Capitu lá no céu.

segunda-feira, maio 23, 2011

E se?

E se de repente você descobrisse que aquele Deus por quem procura, aquele mesmo que você no fundo tem medo de achar, já encontrou você e está parado à porta? E se, ao passar pelas ruas, cafés, pontes e parques, sempre alguém apontasse em sua direção e cochichasse: "Não é aquela ali de quem Deus estava falando que não dá papo para ele, não é ela que não aceita seu colo nem quer ter removido o espinho do pé? Não é aquela ali que anda mancando, toda torta, praguejante, mas nem conversa com Quem diz que procura, não o olha, não o aceita, não abre a porta, não o quer, com medo de se endireitar?"
E se ele a abraçasse à força? Não, pode esquecer. O Deus que a encontrou jamais forçaria um abraço, porque amar e violar não sabem coexistir em uma oração.

Ele está à espera do convite: Apocalipse 3:20.

sábado, maio 07, 2011

Para minha mãe

Quando tudo for porta fechada
E todas as línguas, golpes de espada,
Em você terei braços que abraçam,
Olhos que acolhem
E colo que afaga.
Onde você estiver, minha mãe, é ali que começa meu céu.

(Ana Cristina MENDES Gontijo)

terça-feira, abril 26, 2011

Sei que era piada, mas a resposta séria veio, fazer o quê? Quando me perguntaram por que a mentira, se tem perna curta, corre mais do que a verdade, respondi que a única coisa que sei é que a mentira corre para o abismo, mas a verdade caminha de dia em dia, de degrau em degrau, para a eternidade.

segunda-feira, abril 25, 2011

Não podemos fabricar esperança a partir do nada. Mas devemos regar a que vemos nascer teimosa, pequenininha, boba, até que crie raízes tão fortes que já não possa ser outra coisa senão nossa, outra coisa que não nós.

Ana Cristina Mendes Gontijo

quarta-feira, abril 20, 2011

Queda e Redenção

Não creio na narração da queda em Genesis como literal, mas alegórica. A limitação é comum a todo ser criado, mesmo sendo perfeito no sentido de equilibrado, bem projetado, bom. Ao se chocar com outro ser (ou Outro Ser, com letra maiúscula), os seres criados buscam se autopreservar e brigam por espaço. Nessa tentativa, desequilibram-se e desequilibram o outro, que desequilibra-se e desequilibra o um, e dá no que deu.

Cada ser humano tem o mesmo anseio por eternidade e completude que têm os demais - todos e cada um deles dotados de poder criador, à imagem e semelhança do Criador. Mesmo depois de desequilibrados e beirando o colapso, trazem em si a semente da perfeição, mas ela precisa morrer para germinar. É só por meio do colapso total do ser que cada um de nós pode ser refeito fora dos limites da existência como hora conhecemos, num processo que nem ouso tentar entender, mas que me gera uma esperança sem limite ou explicação.

Muito menos sei explicar por que acredito que a tal semente de perfeição possui nome de homem, e que caminhou por estradas poeirentas da Ásia há dois milênios, comendo peixe, tomando vinho e sendo amigo de gente imperfeita.

O único ser que não buscou a autopreservação foi exatamente o que era perfeitamente equilibrado. Colapsou-se para equilibrar o restante, Ele que é a própria semente de perfeição que habita tudo e todos os que seguirão a mesma rota de morte e ressurreição.

Ana Cristina Mendes Gontijo

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quarta-feira, abril 06, 2011

Eu? Serzinho único e ao mesmo tempo não. Nos olhos de qualquer pessoa, reconheço-me também: miserável, perversa, diversa e fantástica.
Eu? Animalzinho medroso que chora e ri, come e dorme, trabalha, ama e se esquece de amar.
Eu? Sou filha da que fui e mãe da que serei. Sou soma, subtração e produto.
Eu? Sou o universo inteiro; um ovo: qualquer dia nasço.

Ana Cristina Mendes Gontijo

terça-feira, abril 05, 2011

A morada de Deus

Ó insensato, este Deus que tão avidamente buscas, tu não o encontrarás nas nuvens...

Tampouco irás descobri-lo nas regiões etéreas. Lá Ele não está. Pára esta busca desatinada!

Irás enlouquecer-te se persistires nesta procura.

Pára! Descansa um pouco! Abre teus olhos, abre-os bem e vê: o Deus que buscas nos mistérios insondáveis está à tua frente, na simplicidade da criança que te sorri, na necessidade do pobre que te estende a mão súplice, ou no gesto largo e amigo do passante que te diz bom dia.

No coração do Homem é que Deus está. Não o busques em outro lugar.

Deus é amor e o coração é a sua morada.

(Escrito por meu pai, Antônio Nogueira Gontijo, em 1992)

segunda-feira, janeiro 31, 2011

Minha alma na Bacia

Fui apresentada ao Paulo Brabo de uma forma que, a princípio, julguei serem vias erradas. Um amigo me enviou este video e, embora sua participação tenha sido boa, não me chamou atenção especial. Meu amigo insistiu e enviou um texto. Li e gostei. Li o segundo e gostei muito. Quando li o terceiro, "A sedução da ortodoxia", só não caí de joelhos porque não achei que teria sido uma cena bonita, e, muito pior, seria uma profissão de adoração nada compatível com minha certeza sobre as inevitáveis avarias da natureza humana.

Intrigada, voltei ao vídeo e gostei do que vi: um Paulo Brabo tímido, o oposto de um cara que se imagina possuidor da verdade. Um tipo quase frágil, ou muito frágil, imagem que deu contornos a minha simpatia por ele. Para minha sorte (realmente acredito que não tenha sido azar), o vídeo me desarmou. Cadastrei-me no blog para receber textos, comprei o livro da Bacia e fui irremediavelmente afetada pelo que li.

Pelo que conheço do autor, não faço boa coisa ao elogiar tanto sua obra. Ele afirma reiteradamente que não gosta da idéia de ter um séquito nem quer convencer ninguém sobre nada. Apologética nos moldes tradicionais passa ao largo de sua pena, um ganho para a literatura chamada cristã contemporânea. Mas, se ele não gosta de babação de ovo, por que escrevo? Escrevo porque não consigo não falar do que modifica meu mundo, seja uma música, um livro, filme ou pessoa, uma comida, perfume ou piada. Neste caso, um blog.

Com a Bacia das Almas, aprendi muitas coisas e também estas duas: 1) que honestidade não tem limite; 2) que honestidade tem limite. E se isto não é tempero suficiente para minha sopa de letras, então não sei o que é.

Paulo Brabo, quando escreve, me pega por uma ponta de corda e me desenrola feito peão. Mas não é um rodar qualquer, muito menos solitário: ele mesmo parece girar comigo e se permite tontear. Percebo que também cambaleia e acredito que ele, assim como eu, gosta de ser desestabilizado. Leio seus textos e sinto-me como as crianças que rodam e rodam e rodam até se estatelarem no chão, mas, em vez de chorar o tombo, gostam de ver o mundo girando borrado e disforme e se acabam de rir, até que alguém grita: vamos de novo?

sexta-feira, dezembro 31, 2010

Poisintão

Queridos meus,

2010 me entrega suas últimas horas feito um vilão em fim de novela, fingindo de bonzinho para ver se eu esqueço o que ele me fez. Tenho memória curta e coração derretido: perdôo!
Olho de soslaio e, juro, até consigo enxergar que este ano feioso, filho de uma ronca e fuça que me levou tantos amores e me fez chorar tantos lutos, não passa de um coitado. Ele tombou, eu venci. Renasci tantas vezes e - surpresa! - não me cansei de morrer e tornar a viver.
Antes, arregaço as mangas, percebo-me forte, espicho os olhos para tentar enxergar o próximo ano pela fresta que se abre. Vem aí a próxima década, aquela que me verá chegar aos 40 anos e que esconde tantos segredos atrás de cortinas que ficam atrás de cortinas. Olho para este punhado de anos a me convidar para o baile: "coreografe-me, invente-me, dance-me!" Convite aceito.
Meu par eu já escolhi. Ele é o mais belo, o mais sábio e amoroso. Ele é meu Deus, Senhor e Rei. Mas eu não sei enxergá-lo, por isso danço com suas sombras, suas formas, seus modos de me amar e de me fazer viva, humana, Ana. Descobri uma forma de senti-Lo presente, verdadeiramente presente: olhando cada um dos meus amigos, meus amores, que representam a face de Deus, a voz de Deus a me convencer de que, sim, vale muito a pena viver.

Obrigada, muito obrigada, meus queridos. Vamos juntos bailar o baile da nova década. Eu estou feliz!

Hoje li um lindo texto do uruguaio Eduardo Galeano e dedico-o a vocês, que são minhas chaves salvadoras.

Com amor e gratidão,

Ana Cristina, Ana, Cris, Tina, Tininha, Anita AnaCris, Cristininha, Binoca, Tineném, TinAugusta e Titi. Sim, todas elas eu. :o)


"Nos subúrbios de Havana, chamam amigo de minha terra ou meu sangue.
Em Caracas, o amigo é minha pada ou minha chave. Pada, por causa de padaria, a fonte do bom pão para as fomes da alma; e chave por causa de...
- Chave, por causa de chave - me conta Mario Benedetti.
E me conta que quando morava em Buenos Aires, nos tempos do horror, ele usava cinco chaves alheias em seu chaveiro: cinco chaves, de cinco casas, de cinco amigos: as chaves que o salvaram."

(Eduardo Galeano, "O livro dos abraços", página 237)

quarta-feira, dezembro 22, 2010

O aniversário de Jesus

Afogados em papéis de presente rasgados e brinquedos de um, de outro, meus três sobrinhos riam alto e confundiam quem deu, quem ganhou, me empresta aqui, brinca agora com este aqui.

Antes de abrir os presentes, tínhamos ceado. Teve oração e uma pequena homilia, mas eles não prestaram atenção, nunca prestam. Ficaram lá, vigiando o amontoado de pacotes coloridos. Eram especialmente atraídos pelas caixas maiores, as bem grandonas, e, vidrados, mal conseguiram engolir as dez garfadas de comida prometidas à mãe.

A farra foi até tarde, porque em noite de natal o sono não vem, desaparece, sai para dançar com a lua e volta só de madrugada, quando então brinca de derrubar um por um, começando pelos mais novos. Davi, o irmãozinho do meio, pediu que sua mãe se deitasse com ele. Antes, encheu a cama de brinquedos novos, mas teve o cuidado de abrir espaço para ela ao seu lado. Como todas as noites, foram orar. Ela propôs que agradecessem pela vida do aniversariante.

- Que aniversariante?

-Hoje é aniversário de Jesus.

Mudo de surpresa, depois de alguns segundos quis confirmar:

- Aniversário de Jesus?

- É. Aniversário de Jesus. Natal é para a gente comemorar o aniversário de Jesus.

Indignado, Davi pôs-se de pé em um pulo.

-É aniversário dele e nós não vamos?

sábado, dezembro 18, 2010

O banho

Ela estava no ponto de ônibus quando viu aproximar-se uma penquinha de crianças. Tinham as roupas puídas e a pele de um tom cinza empoeirado. Brincavam de dar tapas e pontapés, corriam, gritavam, voltavam e se morriam de rir.
Conversou um pouco com eles e descobriu que eram irmãos. Depois de alguns minutos, pediram uma moeda.
- Estou sem dinheiro. Mas toma uns biscoitos aqui, ó.
O mais velho pegou o pacote e os outros se ajuntaram. E no meio daquele cercadinho de pernas finas e joelhos protuberantes, mãos imundas, cabelos grudados e carinhas inocentes de meninos Jesus, o menorzinho deles, todo entusiasmado, anunciou a grande novidade:
- A gente quer dinheiro é pra comprar sabão. A mãe vai lavar nós hoje.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Já fazia um ano que, todas as noites, ouviam-se gritos apavorados vindos da casa ali na esquina, ali em frente, e barulho de objetos se quebrando, e berros roucos de um marido ensandecido.
Os vizinhos resolveram que era hora de fazer alguma coisa. Alguém correu ao bar e ligou para a polícia. O camburão demorou a vir e, quando enfim chegou, encontrou a casa em perfeita paz.
Do lado de fora, as muitas vozes se atropelavam para ver quem dizia primeiro, quem tinha ouvido mais gritos, muitos gritos, coisa horrorosa, tem que mandar capar ou prender.
Os policiais, que calados chegaram e calados continuavam, foram averiguar. Tocaram campainha. Perguntaram à mulher se era verdade que seu marido lhe batia já há algum tempo.
E de seus lábios trêmulos brotou uma vozinha fraca, quase um cochicho, o casulo de um grito:
- Ó, seu guarda. Bater ele não bate. Ele só me chuta e me enforca.

sábado, dezembro 04, 2010

A volta do clássico das multidões

América Mineiro para mim é sinônimo de pai. E pai, todos sabem, é coisa de primeira divisão. Desde já, devo esclarecer que sou atleticana. Muito atleticana. Demais, até.

Mas o América é o time do meu pai e foi por isso que, ao lado dele, vivi em 2009 a expectativa de que o Coelhão subisse à Série B e passasse a figurar entre os 40 principais times do Brasil. A final da Série C foi disputada no Estádio Independência, contra o Asa de Alagoas. Havia 38 anos que meu pai não ia a um estádio na capital mineira para ver seu time jogar. Naquela tarde de casa cheia, o sol brilhante anunciava que o América ressurgia.

Ingresso na catraca, corações acelerados, entramos com reverência no antigo Campo do Sete e nos misturamos aos outros dez mil torcedores que cantavam forte e bonito (que Kombi, que nada!). Diante daquele mar verde-negro, papai não conteve a emoção e deixou rolar algumas lágrimas. Abracei-o. Poucas vezes senti-me tão próxima daquele homem que me ensinou tanto do que sei. Durante o jogo, senti o que é ter seu sangue em minhas veias. Torci, gritei e me emocionei como se eu fosse ele, como se o time fosse ele, como se o mundo fosse nosso e aquele momento, o último de nossas vidas.

Na hora do gol, quanta emoção da torcida ao ver seu gigante despertar-se de um sono longo e profundo! Sim, o América Mineiro enfim honrava sua história e estava de volta à Série B.

O ano de 2010 não foi fácil para o Coelho, mas a luta valeu a pena. A base que disputou a série C foi mantida e os jogadores, guerreiros incansáveis, superaram seus limites e levaram o time a nova ascensão. O América Mineiro merece estar na elite do futebol brasileiro. E merece também a chance de aproveitar os jogadores que revela. Quero ver o time bonito quando conseguir segurar em seu elenco grandes estrelas como as que já surgiram em seus domínios: Tostão, Éder Aleixo, Palhinha, Ronaldo Luiz, Euller, Gilberto Silva, Evanilson, Alex Mineiro, Fred (atualmente no Fluminense), Danilo (atualmente no Santos), todos revelados pelo América.

Quero, sempre que vir o time verde-negro no gramado, lembrar-me daquela tarde com meu Antônio Gontijo. Lá, quando ele e eu nos abraçamos, campeões, senti algo difícil de explicar: meu mundo preto e branco se fundiu com o dele, preto e verde, e o novo ano se encheu de esperança. O resultado disso é que passamos 2010 torcendo juntos, eu e ele pelo Coelho, ele e eu pelo Galo, e até minha mãe passou a ver os jogos conosco.

Nem por isso a vida tornou-se mais fácil, mas, definitivamente, tornou-se mais bonita.

Ano que vem tem Galo e Mecão pelo Campeonato brasileiro. Ano que vem tem a volta do antigo clássico das multidões!

sexta-feira, outubro 22, 2010

Devo, não nego

Em maio de 2007, escrevi:

“(...) Minha visita à comunidade Vila Estrela teve a ver com uma moça que vigiou meu carro enquanto eu almoçava em um restaurante perto de casa. Viciada em crack há dois anos, ela não fuma há quase três semanas. Estava sendo ameaçada de morte pelos traficantes por uma dívida de sessenta reais. Por isso, vinha passando as noites na rua, perto do tal restaurante ali na esquina, ali embaixo, sem poder subir. Não pôde participar da festa do dia das mães promovida pela escolinha do morro. Ela tem três filhos. Naquele dia, antes que o sol despontasse, para não ser vista, tinha ido a sua casa para pegar uma muda de roupas. Aproveitou para dar um beijo nos filhos e coar um café para a mãe.

Durante as últimas três semanas, sem pouso, ela começou a ter contato com a graça libertadora de Deus de uma forma que, para qualquer um de nós, pareceria que Deus estava agindo no conta-gotas. Aparentemente, as coisas não haviam mudado tanto. Mas ela demonstrava grande alegria ao descobrir que seu Criador estava disposto a aceitá-la. Para ela, era como se uma forte chuva de graça estivesse descendo do céu sem nuvens, e ela dançando e comendo as gotas da chuva.

Eu vi. Uma moça jurada de morte, viciada há dois anos, finalmente passou três semanas sem fumar crack. Ela atribui o fato à libertação que vem de Deus. Para muitas pessoas lá no morro, é apenas fogo de palha: "Ela vai voltar, essa aí não tem jeito". Para mim, o maior milagre da Terra; o momento em que Deus se revela a um pequenino e o toma nos braços. Isso é suficiente para encher meu mundo todo de alegria.”


No período em que escrevi o texto, tive bastante contato com ela. Depois, sua irmã me procurou para dizer que ela vendeu todas as roupas que ganhou de mim e foi comprar a porcaria. Disse ainda que ela não prestava e que eu não perdesse meu tempo. Insisti ainda uma vez, consegui uma vaga em um projeto de recuperação da igreja batista mais perto de casa. Ela foi, depois voltou para casa e para o fumo. E eu me permiti desistir.

Acho que me satisfiz com as bondades que tinha feito, e, verdade seja dita – pensei - quem quer ajuda, quer; quem não quer, não quer. Fiz minha parte para um mundo melhor. Imagine você que saí do meu cercadinho e cruzei as chamadas fronteiras do submundo com uma moça que devia dinheiro a traficantes. Deus deveria estar muito feliz e orgulhoso de mim. Mas, agora que eu me sentia usada e enganada, melhor procurar outro depositário para minha caridade cristã. E foi assim, com desculpinhas esfarrapadas, que a eu-boa-samaritana modelo falsificado despiu-se de sua fantasia e voltou ao normal.

Passei um tempo fora do Brasil. Quando voltei, encontrei na rua a irmã da nossa moça. “Tá presa. Aquela ali não presta. Eu avisei, né.”

Mês passado, reconheci um corpo magro, alto, pouco feminino, descendo a rua com uma penca de crianças. Era ela. Fingi que não vi e ela fingiu que não me viu. Ela me deve dinheiro e satisfação, está com vergonha de mim. Mas maior vergonha sinto eu, a maior devedora sou eu. Minha sorte é que ela não sabe.

A população inteira do planeta pode argumentar que não devo sentir-me culpada, afinal, ela é adulta e a vida é dela. Mas tem um detalhe, apenas um detalhe maior do que o mundo inteiro: um tal incômodo toda vez que penso nela – e sempre penso nela. Uma vontade de chorar por ela, um amor que brotou não sei de onde e não quer mais ir embora. Uma voz que me diz com insistência gentil: “Eu nunca desisti de você em nenhuma das vezes que você me enganou, eu não fingi que não conhecia você quando teve vergonha de me encarar.” Esta voz, o grito mais visceral da Terra, faz com que eu perca meu prumo. Revela minha nudez e meu descaramento camuflado de bondade traída.

A imagem daquele sorriso de esperança do primeiro dia em que conversamos me é eterna. Olhei em seus olhos e era eu. Naquele momento, nós duas nos encontrávamos em Deus, éramos o mesmo ser miserável, perverso, diverso e fantástico. Ela não mentia, eu não mentia. O encontro foi real.

Não me sinto responsável pelas misérias do mundo – embora eu seja, em parte, responsável pelas misérias do mundo – mas sou, sim, guardadora da Liliane e de seus filhotes. Não foi ninguém que me deu o título, eu apenas sinto e sei.

Mas sou tão canastrona, que, enquanto oro pedindo a Deus que me faça chegar mais perto dEle, enquanto aguardo a revelação de que lugar devo ocupar no Reino, ignoro uma mãe e três crianças na rua, fujo de qualquer coisa que vá exigir de mim mais do que uma boa ação aqui e ali. Vou lustrando as sandálias de Jesus com minhas pequenas justiças, mas no fundo sei o que tenho que fazer. No fundo, todo mundo sabe. Sabe, mas não faz.

Devo, não nego, pago quando puder.

domingo, junho 20, 2010

Texto meu publicado no blog "Lances e Nuances", em ritmo de Copa do Mundo: "Quem mandou nascer brasileira?"

http://lancesnuances.wordpress.com/2010/06/12/quem-mandou-nascer-brasileira/

quarta-feira, junho 16, 2010

Eu, mim e eu mesma

Eu, este montinho de matéria animada que atende pelo datadíssimo nome de Ana Cristina (coisa mais anos setenta!), há pelo menos duas décadas me faço perguntas bem estranhas. Sei que professores de etiqueta aconselhariam a esconder minhas esquisitices do resto do mundo, mas hoje deu vontade de sair contando para os outros – no caso, você.

São muitas as perguntas, mas tem uma que me gera sempre o mesmo riso idiota. É uma dúvida que até imagino ser óbvia demais, talvez universal, mas, ao se transformar em meu questionamento, já não é de mais ninguém: “Por que eu sou eu?”. Tipo, com seis bilhões de montinhos de matéria animada organizados em forma de seres humanos habitando o planeta neste exato momento, por que eu sou precisamente quem eu sou em vez de ser qualquer um deles ou algum outro que nunca tenha existido? Igualmente estranho, por que nenhum deles é eu?

Sabe aquela sensação de ser a única pessoa no universo que vê tudo como um longuíssimo filme em primeira pessoa? Não, você não sabe; essa pessoa sou eu. Você simplesmente faz parte do filme que vejo. Só eu sei o que é enxergar tudo a partir de dentro, com meus olhos. De todos os humanos que estão respirando agora, em algum lugar, eu sou a única eu. E não tenho direito a troca sequer por um segundo, nem ao menos para saber como é ver a mim mesma pelo lado de fora ou, tão bom quanto, enxergar algum outro pelo lado de dentro. Já imaginou? “Tá bom aí? Ah, então troca comigo um pouquinho que eu também quero”. Ou então, “É sério, eu estou com muita dor de cabeça, vamos trocar por alguns segundos para você saber”. “Ah, não gostei muito deste vestido. Troque aqui comigo para você ver como está muito mais bonita com o preto”. Coisa fantástica seria, por exemplo, ver o mundo por olhos japoneses. Ou da altura de um jogador de basquete de mais de dois metros. Mas não. Só posso ser eu, mim e eu mesma.

Já faz um tempão que eu fico pensando nessas coisas. Quase sempre que me proponho a meditar, fecho os olhos para tomar consciência do meu corpo, mas sou boba além da conta: começo a achar interessante que eu seja um animalzinho. Mamífero. Chorão. Capaz de quase qualquer coisa por uma barra de chocolate suíço ou um prato de camarões ao alho e óleo. E começo a rir sozinha, o que só piora as coisas, porque considero o próprio riso uma manifestação estranhíssima, pense bem. Se eu acho alguma coisa divertida, balanço o corpo e mostro os dentes e faço barulhinhos. Isso significa que estou achando bom.

A meditação, a consciência do riso como sendo pouco mais que um mostrar de dentes e um balançar de carcaça, tudo isso me leva indefectívelmente para a pergunta inicial: "Por que eu sou eu?". De um tempo para cá, porém, a coisa vem ficando mais complexa, embora esteja também cada vez mais divertida, em um estágio que nem consigo começar a explicar. Comecei a me perguntar, por exemplo, como seria se eu tivesse nascido Jesus. Deve ser muito bom ser Ele. E se eu pudesse sê-Lo por ao menos um segundo? Talvez para minha sorte e segurança mental, também tenho minhas coleiras pensamentais, por isso nunca consegui me aprofundar muito na tentativa de resposta.

Mas, sabe de uma coisa? Eu acho que Ele, sim, sabe como é ser eu. Diz até que mora aqui, comigo.


Nota da autora: este texto foi escrito como tentativa de dialogar com a crônica “Os outros”, de Antônio Prata:
http://blogs.estadao.com.br/antonio-prata/os-outros/

domingo, maio 23, 2010

Amor andino

Meu pensamento está no Chile, abraçando aquele chão que, embora esteja na esquina do mundo, fez morada no centro da minha alma.
Ó, faixinha de terra dos meus amores, ó país magrelinho que vive em mim, queria abraçá-lo inteiro e propor baixinho: case-se comigo?

eu-universo

Eu?
Sou o universo inteiro, um ovo:
qualquer dia nasço


Ana Cristina Mendes Gontijo

Horas depois de escrever o texto "Caldeirão, caldeirões", recebi um video que confirma muito do que afirmei. Não se rio ou se choro. Ê lasqueira!

Comido de Bicho

sábado, maio 22, 2010

Caldeirão, caldeirões

Semana passada, eu ia passar a noite no hospital com meu tio e parei antes em um supermercado. Resolvi comprar algo para ler. Em meio a livros de auto-ajuda, culinária e autobiografias de gente que ainda não passou dos 30, encontrei “Os contos de Beedle, o Bardo”, de J.K. Rowling, autora de Harry Potter. Comprei. Passei a madrugada lendo. O livrinho é composto por 5 contos e muitas lições de moral.

No conto “O bruxo e o caldeirão saltitante”, o filho de um bruxo muito caridoso recebe por herança o caldeirão que seu pai utilizava para ajudar pessoas com sua magia. O filho opta por não continuar o trabalho do pai e o caldeirão então passa a apresentar os mesmos sintomas das pessoas a quem seu novo dono negou ajuda. Ao ser perseguido pelo objeto, atormentado dia e noite, o jovem finalmente se dá por vencido e decide tornar-se também um bruxo caridoso, aplacando, assim, a ira da panela justiceira.

Em vez de classificar o conto como bom ou ruim, procedente da luz ou das trevas, não fiz juízo de valor. Preferi o exercício de buscar algumas conexões entre o que li e aquilo que vem sendo anunciado e vivido em tantas comunidades chamadas cristãs.

Da mesma forma como o jovem bruxo foi praticamente forçado a fazer o bem ao próximo como única forma de acalmar o poder que poderia destruí-lo, muitas igrejas ditas evangélicas esparramam a notícia de que a única maneira de escapar do mal é fugir para dentro do templo e participar das campanhas e dar o dízimo. O que atrai essas pessoas às reuniões de oração não parece ser a possibilidade de experimentar Deus ao tornar-se participante da mesa posta, ao fazer parte de uma comunidade que existe para servir. O que leva muitas e cada vez mais pessoas ao lugar físico chamado Igreja é a crença de que o poder (bom) mais poderoso do que o poder (mau) que acreditam ameaçá-los habita ali e só se disporá a protegê-los caso se posicionem do “lado certo”. As regras estão postas: quem obedecer à lista dos “faça” e “não faça” está a salvo. Cada ato de desobediência abre um buraco na redoma protetora, aí o mal tem seu passaporte carimbado, e entra.

Deus, entendido assim, deve ser conquistado e convencido a ficar do nosso lado. Apresentado dessa forma, Ele já não é amor como fonte primária, mas seu amor surge como resposta a estímulos de oração, ofertas financeiras e nossa disponibilidade para participar das reuniões no templo. O que Deus faz ou deixa de fazer passa a ser reflexo de nossa postura na Terra, ou seja, nossa capacidade de obedecer a regras, focar o pensamento e enviar ondas de fé ao alto, de modo a cutucar a barra da saia do dono da bênção e convencê-lo de que é chegada a hora de agir.

Tal lógica é incrivelmente parecida com o modo como antigos povos percebiam o divino. Tanto a idéia do deus do clã (que protege a turma que lhe rende culto) como a personificação de forças da natureza como se fossem fonte de poder divino, alimentam essa engrenagem de retribuição em que o divino não é agente, mas reagente. Ed René Kivitz comentou, recentemente, no púlpito da Igreja Batista de Água Branca: “Nos tempos mais remotos, nossos antepassados adoravam o sol, o trovão, o mar, o Leviatã, as florestas e tudo aquilo que para eles era uma expressão de poder. Quando reconheciam no universo algo poderoso, tendiam a adorar essa fonte de poder ou esse poder. E por que adoravam? Porque desejavam que esse poder lhes fosse favorável. Porque não queriam ser destruídos, mas sim abençoados por esse poder”.

Em tempos recentes, não me lembro de ter conversado com alguém que adorasse o sol ou a lua. Não conheço ninguém que acredite que a dança da chuva vai resolver o problema da seca no nordeste brasileiro. Mas já conversei com centenas ou até milhares de pessoas que acreditam que Deus funciona na base do cutucômetro. Não, não quero diminuir o valor da oração. Eu acredito na importância da oração. Mas isso é assunto para outro texto. O que quero dizer é que a lógica está invertida.

Deus nos amou primeiro. Insisto, o amor dele é agente; o nosso é que é reagente. Nosso amor por Ele e por tudo o que Ele criou é que deve acontecer como reflexo do amor que é o próprio Deus. Mas Ele não nos força a amá-lo. Ricardo Gondim afirmou: “É impossível forçar alguém a livremente amar. Forçar e amar são contraditórios, um esvazia o outro”.

Daí ficam algumas perguntas: e se o filho do bruxo do conto de Beedle, o Bardo estivesse lidando não com uma panela mágica, mas com o Deus que nos foi revelado em Jesus, será que ele seria atormentado dia e noite, ou sua opção seria respeitada, ainda que isso fosse entristecer o coração do Criador? E, pensando nesse Deus, Pai de Jesus: e se as pessoas fossem ao templo não porque alguém disse que ali é seguro e tem distribuição de bênçãos, mas porque lá está reunida uma comunidade que reconhece o amor de Deus? E se cada membro da comunidade oferecesse seu dízimo não porque acha que receberá de volta 100 vezes mais, mas por suspeitar que seu dinheiro possa fazer diferença na vida de algum necessitado? E se, de repente, o mundo inteiro descobrisse que nada do que se fizer ou deixar de fazer pode aumentar ou diminuir o amor de Deus por suas criaturas? E se todo cristão e aspirante a cristão entendesse que o dia mau vem para todos, que o sol brilha igualmente sobre justos e injustos, mas que, apesar de tudo isso, vale a pena servir a Deus apenas porque Ele é Deus? E se um dia descobríssemos que Deus não mandará anjos para consertar nosso carro estragado na encruzilhada, tarde da noite, nem abrirá o mar para que passemos, mas apenas se sentará ao nosso lado (e ao mesmo tempo dentro de nós) e dirá: “Estou aqui com você. A sua dor é a minha dor. Acredite no Jorge Drexler quando ele canta que existe uma luz do outro lado do rio. Reme, reme, reme... E verá que o caminho pode ser bonito, mesmo quando for feio”. Será que as pessoas gostariam de um Deus assim, ou o pregariam em uma cruz, como se uma vez já não tivesse sido bastante?

Pensando sobre essas coisas, olhei meu tio no leito. Segurei sua mão e, em voz alta, agradeci a Deus por Sua presença. Tio disse amém. E o dia amanheceu, sem promessa de cura. “A minha graça te basta” (2 Co 12:9)

Ana Cristina Mendes Gontijo
21/05/2010

terça-feira, março 30, 2010

O céu que parece inferno

Alguém estava confundindo muito as coisas e minha esperança era de que não fosse eu. Na mornidão daquela saleta amontoava-se mais de uma dúzia de crentes. A dona da casa nos contou a história de uma briga entre ela e a vizinha.

- Deixa ela! - profetizou seu triunfo - Quando Jesus vier me buscar, aquela idólatra vai ficar bem aqui me olhando subir e eu ainda vou dar tchauzinho.

Algumas pessoas riram animadas, outras solenemente disseram amém. Eu não disse nada. Senti foi um aperto na boca, como quando se come banana bem verde. Nunca esqueci aquela noite. Todas as pessoas presentes se diziam seguidoras de Jesus, mas ao céu delas eu não queria ir nem de visita. Imaginei uma mesa posta e gente glutona comendo coxões de frango e tortas de chocolate, achando o máximo perceber que a sua volta, separada por uma cerca elétrica, uma multidão de famintos assistia à cena. Parecia um clube ruim. Lembrava mais o inferno.

Tenho sérias dificuldades com gente que quer o céu só para si e para sua turma. Eles batem no peito e arrotam agradecendo o privilégio de estar do lado de dentro da cerca. Sentam suas ancas largas em cadeiras confortáveis enquanto miram, eternamente, aqueles olhos de fome do lado de fora:

- Antes eles do que nós. Brindemos à nossa sorte.

O céu que imagino não é assim. Para mim, céu começa quando a cerca acaba. Céu são coxões de frango e tortas de chocolate sem fim para os meninos barrigudinhos do sertão das Gerais. Céu é chocolate quente para quem quiser, em noites de inverno. É jaqueta quentinha para quem tiver frio. Amor e companhia para quem se sentir só. Ser parte de um grupinho que se aquece enquanto o resto do mundo sente frio e abandono eternamente não pode ser céu, parece o inferno.

Céu é paz de criança mamando na mãe. É a plenitude de ter o rosto do amado nas mãos. É a alegria do reencontro de velhos amigos, pai e filho, filha e mãe, irmão e irmã. Céu é quando o Chico recebe de volta a metade arrancada de si. É quando o trem do Milton, que viaja pra capital, pára na cidade de fim de mundo porque Pinduca acenou.

Para muitos, a idéia de um céu universal destrói toda a noção de justiça. Acho que estão confundindo justiça com vingança. A vingança perpetua a lógica injusta de que sempre precisa haver um vencedor e um perdedor. O que ela faz é apenas inverter a ordem no melhor estilo “um dia é da caça, o outro é do caçador”. Justiça não é transformar o pobre em rico e o rico em pobre, nem é dar a arma pra vítima atirar na cabeça de quem a matou. Nada disso é justiça; é vingança. Justiça mesmo é quando todos - ou são todos ou não é ninguém - recebem a misericórdia e a aceitação do Senhor de Todas as Coisas, lembrando que Ele mesmo, sendo justo e pleno, decidiu esvaziar-se de sua glória e viver neste mundo injusto, e para seu banquete convidou os mais desprezados seres da Terra, gente que não clamava pelo nome de Deus nem seguia as leis de Moisés, dando a entender que de sua mesa farta farão parte tantos quantos tiverem fome e sede.

Céu é choro e riso de arrependimento e é choro e riso de perdão. Céu é justiça e igualdade. Em um céu de verdade mesmo, se um ganha todo mundo ganha. Se perde, todos perdem. É o fim da baba do egoismo e da vingança. Céu que é céu não aceita cercas elétricas e pessoas famintas do lado de fora.

terça-feira, março 09, 2010

O dia em que o fantasma virou defunto

Bati a porta, saí pelas ruas cantarolando qualquer coisa em sol. Lá, do outro lado daquele trinco que só abre por dentro, jazia um fantasma defunto. Quem disse que fantasmas não morrem deveria ir àquela casa só para espiar esse um. Tudo bem que morreu faz pouco, ainda tem quentes as pontas de um ou outro dedo, mas as canelas estão frias. Já não respira, já não incomoda, já não assombra. Se parece olhar alguma coisa é porque ninguém se deu ao trabalho de cerrar-lhe as pálbebras. Pois que fique lá! Se feder, não saberei. Já não divido a casa com o dito morto e pouco se me dá se ali passar todos os séculos estirado no meio daquela sala sem mobília. Bati a porta e saí leve, cantarolando qualquer coisa entre si e dó. Minha canção é alegre, que não nasci para carpideira. É melhor mesmo que os mortos enterrem seus mortos. Quanto a mim, não paro de sorrir e de dançar livremente nos braços do meu amor.

(16/12/2009)

sexta-feira, março 05, 2010

O que não quero mais

Tem gente perguntando se perdi a fé em Deus. Não! O que perdi foi a fé na idéia que eu tinha de que Ele existe para consertar a minha vida. Minha espiritualidade, descobri bastante envergonhada, sempre foi uma tentativa de convencer Deus a mover o universo a meu favor.

Há muitos anos li uma tirinha em que o Pateta da Disney dizia: “À minha frente tenho o norte, atrás de mim está o sul. À minha direita está o leste e à minha esquerda está o oeste. E daí? E daí que eu sou o centro do universo!”. O que para mim não passava de uma boa piada, de repente revelou-me a mim como um espelho. O centro era eu.

Aumentadas sempre em escala logarítmica, minhas necessidades cerraram-me os olhos para a busca do próprio Deus. Alimentada por discursos inflamados de pregadores cuspindo promessas e garantindo favores em nome de Javé, minha fé individualista cegou-me para a beleza da mensagem e do exemplo do Cristo: tudo nele apontava para o Pai. Ele sequer ousou dar testemunho sobre si mesmo. Também não ordenou que anjos o descessem da cruz. Pois quero abrir mão de uma religiosidade que tente convergir céus e terra a meu favor. Sei que não será fácil, nem rápido, nem indolor.

Há momentos em que é preciso coragem para dizer: "Meia volta, volver!". Duvidar, voltar, rever, repensar, nada disso deveria ser considerado covardia ou insanidade. É preciso coragem e coração tranquilo para negar os já tão cristalizados modelos escravizadores. Jesus, nosso Mestre a quem deveríamos imitar, é a chave para abrir as algemas de uma espiritualidade rasa e individualista. Nele é negada toda idéia de que Deus existe para satisfazer nossos desejos e transformar seus seguidores em homens e mulheres poderosos, ricos, bonitos e bem-sucedidos na vida.

O carpinteiro de Nazaré não se encaixou no modelo de messias que Israel esperava: não os libertou do poder de Roma, não acumulou riquezas, não obrigou ninguém a segui-lo nem teve ataques de megalomania. Ainda assim, marcou para sempre a história da humanidade. Seus ensinamentos, sua candura e sua capacidade de amar e compadecer-se foram suficientes para que homens e mulheres de todas as gerações seguissem seus passos com beleza, mesmo quando atingidos pela mais excruciante dor. De todos os testemunhos que ouvimos, os mais transformadores não são os que apontam para salvamentos, mas os que ensinam o viver corajosamente - lembrando sempre que a coragem sem medo não é coragem, mas sandice. Prossigamos então com simplicidade, brandura e bravura.

Diante da pergunta se Deus não opera milagres, afirmo que a questão deveria ser outra: Eu devo depender dos milagres para ser amiga de Deus? Contudo confesso, sem me punir, que não sei como alcançar esse patamar de desprendimento. Só sei que é o inverso do que eu andava vivendo e reconhecer isso, embora não seja suficiente, liberta-me para novas descobertas, com a promessa de que Ele ceará comigo todos os dias e me amará eternamente, ainda que boa parte dos cristãos me tenha por herege porque me recuso a acreditar que Deus seja salvador apenas de mim e deles e do nosso umbigo e do nosso gueto.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

O Mandela de Invictus nada sofre e tudo perdoa

Li na internet o comentário de alguém que dizia que o filme Invictus, sobre os primeiros anos de Nelson Mandela como presidente da África do Sul e sua luta para unir brancos e negros, é uma história tão bonita que parece ficção. Sinto-me como aquele adulto que tem a difícil missão de contar a uma criança a (triste?) notícia de que Papai Noel não existe, mas eu preciso dizer: ora, parece ficção porque é ficção.

Justiça seja feita: Morgan Freeman, no papel de Mandela, atingiu um nível tal de atuação que quase esquecemos que é ele que está na tela - o que não acontece com um Jack Nicholson, por exemplo, que só consegue fazer papel dele mesmo. Clint Eastwood, como sói acontecer, demonstrou sobriedade na direção, domínio do formato com que se propôs a trabalhar, leveza ao tratar de um tema controverso que poderia gerar um filme desnecessariamente violento (o foco era o time de Rugby, não a violência). Ponto para ele. Mas o didatismo eastwoodiano começou a incomodar com menos de meia hora de filme. Todas as cenas parecem ter sido idealizadas para explicar alguma coisa bem explicadinha. O pano de fundo foi logo dado na primeira narração em “off”, as personagens foram apresentadas nos primeiros 15 minutos, cada uma representando diferentes grupos sociais ou ideológicos. Criou-se o primeiro conflito aos 20 minutos e o primeiro ponto de virada entre os 30 e 40 minutos de narrativa (sim, foi tão óbvio que olhei no relógio). É por isso que o moço disse que a história parece ficção. Parece não; é!

Naturalmente, quem conta uma história escolhe quais partes irá contar, o que vem sendo feito desde que o mundo pariu os primeiros contadores de histórias. Não tem como ser diferente. Portanto, é claro que o bom mocismo hollywoodiano exigiria um recorte adequado. Mas é justo aí, onde começa a história bonita do filme, que começa também minha tristeza: o tema principal, que é o perdão, foi tratado de uma forma tão simplista que corre risco de tornar-se uma abordagem nociva, por ter pouco parentesco com a realidade, embora clame para si o status de retrato do real. Exagero meu? Tomara que sim!

Qualquer ser humano que tenha tido uma experiência honesta com Jesus (Nelson Mandela é cristão) sabe que o perdão é possível, mas não brota da noite para o dia. É um exercício tantas vezes amargo. Sabendo que é um ser humano e não um semideus, imagino que o verdadeiro Nelson Mandela deve ter engolido sapo atrás de sapo, deve ter dado muitos sorrisos xaroposos na hora de apertar a mão daqueles que por tanto tempo maltrataram sua pele negra, sua existência negra - e de seus irmãos. Mas aquele Mandela que vi no filme Invictus não possui dúvidas, não se abala, não sofre de amargura nem de ressentimento. Acho até que o próprio Clint Eastwood percebeu o exagero. Para tentar balancear, colocou na boca de um dos seguranças do presidente um discursinho dizendo que Mandela é um ser humano normal, com problemas de gente comum (ah, bom, porque eu já estava quase achando que ele fosse infalível). O único conflito pessoal que parece atingir Mandela é o de sua família que o abandonou porque não compreende sua "alma perdoadora".

O público acha lindo, bate palma, chora, sai do cinema disposto a perdoar. Mas haverá aqueles que desistirão diante do primeiro obstáculo, afinal, quem poderia ter uma alma tão perdoadora a não ser um homem iluminado como Mandela, um semideus que não se abala diante de nada? Talvez eu esteja equivocada, mas eu realmente acho e quero acreditar que, na vida real, o caminho do perdão escolhido por ele exigiu muita meditação, entrega e autonegação. Um processo baseado em disciplina, confiança em Deus, mas também discussões com o Altíssimo, e, por fim, rendição. E, na manhã seguinte, e na manhã que se seguiu à manhã seguinte, e ainda hoje, rendição, dúvidas, raiva, rendição.

Quanto mais normal eu conseguir imaginar Mandela, mais ele será meu herói: alguém que levou às últimas consequências o que Jesus disse: "Quem quiser me seguir negue-se a si mesmo tome a sua cruz". Perdoar às vezes é como pregar-se na cruz. Sim, perdoar é desistir de um direito - olho por olho, dente por dente - para que o outro viva. Mas, se perdoar é negar-se, entregar-se, render-se, é preciso lembrar que somente depois da cruz é que vem a ressurreição. O resto é passe de mágica, é misticismo barato.

quinta-feira, abril 16, 2009

Depois de 3 meses

Post que era email e agora virou post, beeem atrasado.

Aterrisei. Foram exatos 3 meses até que eu me sentisse realmente em casa. Quem conviveu comigo de dezembro até aqui tolerou uma Ana Cristina esquisita, aérea, suspirante e melancólica. Eu estava distante e não conseguia deixar que meu 2008 fosse embora. Não me culpo. Talvez tenha sido o ano mais intenso de minha vida e trouxe consigo uma enxurrada de pessoas maravilhosas de quem tenho infinita saudade. No início eu não gostava do Chile, depois me apaixonei. Foram 3 meses para me acostumar lá. E 3 meses para me reacostumar aqui.
Os tais 3 meses venceram no último fim de semana. Eu estava em São Paulo. Fui ver os shows de Los Hermanos, Kraftwerk e Radiohead, presente de aniversário que veio adiantado alguns meses. Coisas do Kico.
Na ida, fomos escutando Kraftwerk e depois "Radio Kico internacional", um cd com 8 horas de música internacional sem repetir banda. A função random embaralhou tudo e nos solapou os ouvidos com Nick Cave seguido de Jacksons Five, Smashing Pumpkins com Depeche Mode, Bjork com Soda Stereo, David Bowie, Soundgarden, Blonde, The Supremes e o que mais a sua mente fértil conseguir lembrar que existe ou existiu. Uma festa.
Já no hotel onde o casal Kico/Dani se hospedaria, saímos para comer uma comida mexicana horrorosa, depois fui raptada por Kelly, que me levou a um restaurante Chileno e depois um barzinho muito do legal, lá na Lapa. Qualquer minuto meu com Kelly é de engasgar de tanto rir - o lado retardado do nosso humor combina muito bem, obrigada. Domingo de manhã tomamos um táxi desaforado pro Mercado Central pra tomar café da manhã, depois fomos passear pela feira da Liberdade.
À tarde Kelly me devolveu ao hotel e seguimos pro show, Kico, Dani, Papagaio e eu. Ótimas companhias. Kico e Papagaio são dois alucinados por música e conversavam animados enquanto eu tentava reconhecer metade dos nomes de bandas, músicos e músicas que eles citavam.
O show dos Hermanos foi bem morno, embora o repertório tenha sido bom. Gritinhos histéricos de fãs descontrolados não condiziam com o que estava no palco: um Marcelo Camelo e um Amarante tentando forçar um entrosamento que não aconteceu de verdade - só quase. Mas foi bom estar ali no "show da volta" - será?
Kraftwerk era quem eu realmente queria ver, afinal, é a banda que inventou a música pop eletrônica. O show foi legal, mas sem surpresas. Houve alguns probleminhas técnicos e quase nenhuma empolgação do público. Mas valeu a pena ser testemunha ocular desses caras a quem todos os DJs e bandas eletrônicas do mundo devem até as cuecas. A música Numbers, um funkão de 1981, balançou a galera. Olhe só que coisa mais a frente de seu tempo:
http://www.youtube.com/watch?v=6TlvNpIwTto&feature=related
O show do Radiohead não dá nem pra começar a explicar. Fez arrepiar até a planta dos pés - embora estivessem meio anestesiadas depois de muitas horas em pé. A performance impecável, a estética inebriante e a qualidade absurda do som deles explicaram porque eles são uma das bandas mais influentes dos últimos 20 anos. Tom Yorke, o homem da pestana caída, virou uma minhoca no palco, principalmente na faixa Idioteque - que sonzeira!
Quando tocaram o classiquíssimo "Paranoid Android", o público foi ao delírio. Um momento para ficar eternizado. Valeu cada segundo, cada acorde. Finalmente vieram ao Brasil! E eu estava lá. Obrigada, Kico e Dani. Obrigada, Kelly.
Alexal, uma pena não termos nos visto.
Alessandra, foi por isto que eu não fiquei em BH pra te ver. Tentei te ligar mas não consegui falar. :o(

Este é o email oficial da volta. Finalmente entrei em 2009. Voltei ao Brasil, antes de corpo, agora de alma.
Impávido Colosso, pátria amada, Brasil. Tava com saudade de escrever. :o)

Fotos: http://picasaweb.google.com.br/anagontijo/2009SaoPaulo#5317533086557938130

domingo, outubro 12, 2008

Vezinquando vejo fotos antigas só para ver se mudei muito. Escuto músicas que costumava escutar só para ver se meu gosto mudou. Pois hoje resolvi alguns textos que escrevi há alguns anos, no início do blog. Dos poucos que li, este aqui em especial continua traduzindo muito do que penso.
Soli Deo Gloria.

sábado, outubro 11, 2008

GUILLERMO: - Hola, Ana, ¿cómo amaneciste?
ANA: - Más o menos.
GUILERMO: Ya, pero seas sincera, ¡po! ¿Estás bien o estás mal?
ANA: Mal. Pero, no tan mal como ayer.
GUILLERMO: O sea, estás más o menos, entonces.

quarta-feira, outubro 08, 2008


- Isso significa que todas as estradas levam a você?

De jeito nenhum - sorriu Jesus enquanto estendia a mão para a porta da oficina - A maioria das estradas não leva a lugar nenhum. O que isso significa é que eu viajarei por qualquer estrada para encontrar vocês.

William P. Young em "A Cabana" - Sextante - p. 168-169.

sábado, agosto 30, 2008


Mais uma foto da vista da minha varanda... Eu nao me canso de tirar fotos da Cordilheira. Tarde do dia 29/08/08