quinta-feira, março 31, 2005

Agora que o coelhinho foi embora...

Todo ano é a mesma ladainha: religiosos resmungam pelos cantos da cidade que Páscoa agora é coelhinho e ovos de chocolate. Também fico chateada, não vou negar. Mas não quero gastar tempo falando de chocolates e coelhinhos e de como o comércio se aproveita de datas como esta. Hoje não. O coelhinho já foi embora.
Há duas semanas, Anis Leão publicou na Folha do Povo, em Itaúna-MG, um texto de beleza inenarrável, sobre os motivos de sua adoração ao Espírito Santo. Veio como sonda a varrer meu interior. Senti que o próprio objeto da adoração falava pela pena de Anis. E quero dizer que adoro o Espírito Santo porque Ele me convenceu, com sua Graça Irresistível, que Ele mesmo, Poder de Deus, estava ali para ressuscitar o Filho e vencer o aguilhão da morte. Esta é a nossa Páscoa.
Os hebreus celebraram a Páscoa pela primeira vez na noite que antecedeu à saída do Egito. Embora pareça não haver conexão entre aquela e esta Páscoa que celebramos atualmente, o objetivo, na verdade, permanece o mesmo, o de festejar a libertação. Naquela ocasião, cada família deveria sacrificar um cordeiro macho, sem defeito, e comer toda a carne. O sangue do animal deveria ser aspergido na porta de entrada da casa, em sinal de consagração. Nas gerações seguintes, os hebreus mantiveram a festa da Páscoa em memória da grande libertação da escravidão vivida no Egito. O ritual determinava que os israelitas somente poderiam comer, na celebração, carne assada de cordeiro, ervas amargas (que simbolizavam a amargura da escravidão) e pão sem fermento (para lembrar que o povo saiu às pressas e não teve tempo de levedar a massa). A celebração se dava no Templo e, após sua destruição, no ano 70 da era cristã, a Páscoa passou a ser comemorada pelos judeus sem o sacrifício do animal, mas apenas com orações e jejum, conversão e arrependimento dos pecados.
Para os Cristãos, contudo, a Páscoa passou a ter um sentido especial. Jesus foi crucificado em uma sexta-feira de Páscoa (para os judeus, a festa não tem que acontecer necessariamente em um domingo). Dessa forma, Jesus foi considerado como sendo o próprio cordeiro pascal, preparado pelo Pai para realizar o sacrifício definitivo. O cordeiro tinha que ser perfeito, sem pecado. Não poderia ter nenhum de seus ossos quebrados. Seu sangue tinha que ser derramado em favor dos pecadores. Inúmeras passagens do Antigo Testamento apontam para o sacrifício vicário de Jesus, como, por exemplo, o capítulo 53 de Isaías, escrito mais ou menos 600 anos antes do nascimento do Nazareno, e que descreve minuciosamente a morte do Servo do Senhor.
Mesmo após a morte vicária de Jesus, grupos de judeus convertidos à nova doutrina insistiam em manter o ritual de sacrifício de animais. Por este motivo, o autor da carta aos Hebreus dedica grande parte de suas reflexões a explicar que o sacrifício vicário de Jesus fora único, suficiente, e, portanto, não se repetiria: “... não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção” (Hebreus, capítulo 9, verso 12). “Jesus, porém, tendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à direita do Pai...” (capítulo 10, verso 12).
Esta é a nossa Páscoa. É agradecer por aquele que, embora fosse igual a Deus, tornou-se homem e morreu pela humanidade. Seu sacrifício foi oferta única e suficiente. Mas a morte não o venceu, e o Poder de Deus o ressuscitou ao terceiro dia. Depois de ter falado a centenas de pessoas, e de ter sido tocado (não era apenas espírito) durante quarenta dias, subiu aos céus, tendo recebido um Nome que está acima de todo nome, e pelo qual importa que sejamos salvos.
Foi por amor que Ele tomou o cálice da ira, da justiça de Deus. Foi por amor. Quanto aos chocolates, comam, são deliciosos. Mas que isto não impeça de proclamar que há mais de dois mil anos alguém se ofereceu para morrer em seu lugar, e no lugar de seus filhos, e no lugar de seus pais, porque para Ele não existe barreira de tempo. Esta é a nossa Páscoa.

DA BAIXADA FLUMINENSE PARA ITAÚNA - As lésbicas de “Senhora do Destino” e a Parada do Orgulho Gay em Itaúna

Quando o último capítulo da novela “Senhora do Destino” foi ao ar, dia 11 de março, o casal de lésbicas Jennifer e Eleonora já não corria mais risco. Seriam “felizes para sempre” e contariam com a aprovação de suas famílias e de boa parte do público que acompanhou a novela. Mas não foi sempre assim na história da Televisão Brasileira: na década de noventa, o público tanto fez, tanto protestou, que a direção da emissora exigiu que o autor da novela Torre de Babel tirasse do ar cenas que mostravam um casal de lésbicas. As moças morreram durante um incêndio em um shopping center. Em 2003, com um casal de garotas colegiais em “Mulheres Apaixonadas”, a discussão foi retomada. Naquele momento, porém, a sociedade já havia passado por diversas transformações em menos de uma década e colocar um casal de lésbicas no horário nobre já não configurava tanto uma transgressão das “leis não escritas” da televisão (que estabelecem o que pode ou não ser veiculado). Tais leis existem como um contrato não-formal entre emissoras e público, e dispõem sobre limites comportamentais que são rompidos ou pressionados a cada programação que vai ao ar. Os responsáveis pela programação da emissora possuem a tarefa de rompê-los, arrastá-los até o ponto em que se estabelecerá o novo limite do tolerável e do moralmente aceitável, e que, por sua vez, será novamente rompido. Cada vez que um limite está próximo de ser ultrapassado, há muita tensão. Se o público não aceitar o rompimento, haverá pressão e certamente a emissora terá que mudar seus planos, recuar até que veja novamente a oportunidade de romper com o mesmo limite.
De forma muito parecida, foi em meio a muito disse-que-me-disse e muita polêmica que a primeira Parada do Orgulho Gay passou por Itaúna, em julho do ano passado. Assim como na televisão, existem leis não escritas entre sociedade e governantes, e, ao eleger seus representantes, a população espera ter seus valores morais salvaguardados. Boa parcela dos cristãos de nossa cidade reagiu ao movimento. Várias pessoas pediram que a Prefeitura impedisse a realização da parada gay.
O que não pensaram, todavia, é que o cancelamento do evento seria apenas uma desculpa para que se pudesse adiar – e não impedir – o confronto com a realidade: o número de homossexuais assumidos aumenta a cada dia.
Esta é uma discussão que não pode mais ser adiada, afinal, como é que a sociedade fará para continuar evitando tanta gente? A discussão torna-se ainda mais áspera entre Igreja e homossexuais, porque existe uma batalha milenar sendo travada entre eles. O que passo a expor é um questionamento da legitimidade desta batalha.
O que se demonstrou, naquele acontecimento específico e isolado, é que pouco importa o quanto o ser humano sofra carecendo de amor e aceitação, porque várias de nossas igrejas têm muita dificuldade de amar. Nas semanas que antecederam à parada, gritos raivosos ecoavam pela cidade: “Isso é uma abominação!”, “Isso é uma cilada do diabo para desmoralizar a Igreja!”, “Que aberração!!”.
A Parada do Orgulho Gay foi algo muito mais sério do que possa ter parecido: de um lado, seres humanos buscando ser aceitos e amados; de outro, a sociedade em teste, a Igreja em teste. O que Jesus faria se estivesse ali presente? Sairia com chicotes expulsando a todos? Não, não creio. Imagino que Ele os tomaria pela mão, um a um, e lhes diria como são queridos, como foram formados de modo maravilhoso no ventre de suas mães. Imagino Jesus tomando cada um pela mão e lhes contando do seu amor infinito.
Pouquíssimo tempo antes que o movimento gay fosse às ruas em forma de Parada, tivemos em Itaúna a “Marcha para Jesus”. É bom que pessoas se reúnam em uma tarde para proclamar por toda a cidade o amor de Jesus. Mas de que adianta sair pelas ruas com um caminhão de som, dançando e cantando que Jesus salva, que Jesus muda vidas e sara feridas? A realidade é que milhares de pessoas morrem por dentro porque muitos membros das igrejas ainda não aprenderam a oferecer amor, carinho e amizade desinteressada.
É dever do Cristão amar aos diferentes, porque Jesus amou toda a humanidade. Rejeitar o próximo não é, nunca foi nem nunca vai ser a melhor maneira de falar sobre o amor de Deus.
Com tudo isso, antes de ser mal interpretada, devo dizer que amo a Igreja de Jesus mesmo com todas as suas falhas, porque eu mesma erro com muita freqüência (embora tente sempre aprender de Jesus, que é manso e humilde de coração)... E é por amar a Igreja que luto contra o farisaísmo, um dos maiores males que assolam nossas comunidades. Se o farisaísmo não for vencido, corremos sério risco de esvaziar o discurso de Cristo. Se a Igreja, vestindo uma falsa capa de santidade, falhar em amar ao próximo, então de nada vale toda a pregação. Se o amor de Jesus, representado pela Igreja, não se mostrar igual para homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, negros, brancos, índios e amarelos, drogados, religiosos, estupradores, assassinos (e assassinados), então se esvazia a mensagem da Graça. Então se crerá que Deus ama a cada um de nós conforme o merecimento, que Ele ama a vítima mais que ao assassino, anulando-se assim a mensagem da Cruz.
O que proponho não é que os cristãos passem a apoiar as práticas homossexuais, mas que vejam e respeitem, por trás delas, o ser humano, criatura divina.
Ainda sobre as leis: não estaria Jesus rompendo com uma porção destes limites quando resolveu agir protegendo a mulher adúltera apesar – e acima – da Lei? E sobre o amor e a aceitação vinculados ao arrependimento do outro: Ele escolheu amá-la antes ou depois de ela ter-se arrependido?

quarta-feira, março 30, 2005

Ô Aeroplano, leva eu!!

Nos tempos de meu pai menino, na fazenda em que ele nasceu vivia a Catarina, “mãe preta”. Ela dizia que era do tempo do cativeiro mas já tinha nascido forra. Toda vez que ouvia barulho de avião, ia pro quintal e gritava: “Ô aeroplano, leva eu!”...
Catarina, Catarina, levar você pra onde? Onde, nesta Terra, tem lugar pra você ir? Se levar você pro Norte, pra terra do Tio Sam, lá você não é nada, brasileiro não é nada, não tem atendimento médico, vive com medo da Imigração, sonha com feijoada, come McDonald’s porque o dinheiro não dá pra coisa melhor... Brasileiro naquelas bandas só pensa em juntar dinheiro pra um dia voltar e comprar casa, comprar prédio, sítio, respeito, posto de gasolina, vestido de marca, sapato de couro e nariz empinado...
Catarina, pense bem! Se o avião for pra São Paulo, Rio ou Belo Horizonte, lá não tem respeito, que respeito é coisa cara, custa um endereço na Zona Sul, um carro bem bonito e dinheiro pra salão de beleza e restaurante japonês. Custa trocar sua identidade por etiqueta na calça e na blusa.
Lá não lhe conhecem o nome, não sabem que você é mulher bacana. Não sabem que você tem alegria e que é sabida e que é prendada. Não olham na sua cara, nunca viram o seu rosto – não é igual aos das outras tantas Catarinas? Alguém viu? Alguém notou? Passaram reto, já está tarde. Passaram reto, é perigoso. Passaram reto, você não é rica. Passaram reto, pouco importa. Lá você não é Catarina, lá você é a décima a comprar pão, a quinta de pé na fila, a centésima a rodar a roleta do ônibus. Lá você não é forra, lá todo mundo é escravo, todo mundo nasce escravo.
Não vá lá não, Catarina! Você nasceu alforriada. Eu é que nasci escrava, sou do tempo do cativeiro, de um sistema que açoita dia e noite, que faz doer e que oprime, e eu... Eu trabalho para este sistema, já até me acostumei com ele! Aqui eu converso com você, mas lá é diferente. Lá eu não sei o seu rosto e você nunca viu o meu. Eu não paro, já está tarde; você não pára, é perigoso; eu não paro, pouco importa. Isto você não quer... Você gosta é de ser livre, não tem dono, não vende a liberdade por nada. Você sabe seu valor.
Catarina, Catarina, não entre naquele avião! Se o moço pousar e chamar e oferecer carona, agradeça, dispense, não vá!
Mas, pensando bem, Catarina, também é melhor não ficar na fazenda. Pergunte ao moço do avião se ele ainda leva você. Pergunte se ele sabe de algum lugar, se nas andanças pelos ares ele viu algum lugar onde você possa ser a Catarina, qual nenhuma outra se viu. Um lugar em que lhe dêem valor simplesmente por ser você, por ser só uma, por ter características que só você tem. Um lugar em que todos saibam que, por este mundão afora, nunca, jamais acharão outra igual a você.Se encontrar esse lugar, Catarina, por favor, não se esqueça de pedir ao moço que volte pra me buscar. Quando eu ouvir o barulho do avião lá fora, vou sair e gritar: “Ô aeroplano, leva eu!”...