terça-feira, março 30, 2010

O céu que parece inferno

Alguém estava confundindo muito as coisas e minha esperança era de que não fosse eu. Na mornidão daquela saleta amontoava-se mais de uma dúzia de crentes. A dona da casa nos contou a história de uma briga entre ela e a vizinha.

- Deixa ela! - profetizou seu triunfo - Quando Jesus vier me buscar, aquela idólatra vai ficar bem aqui me olhando subir e eu ainda vou dar tchauzinho.

Algumas pessoas riram animadas, outras solenemente disseram amém. Eu não disse nada. Senti foi um aperto na boca, como quando se come banana bem verde. Nunca esqueci aquela noite. Todas as pessoas presentes se diziam seguidoras de Jesus, mas ao céu delas eu não queria ir nem de visita. Imaginei uma mesa posta e gente glutona comendo coxões de frango e tortas de chocolate, achando o máximo perceber que a sua volta, separada por uma cerca elétrica, uma multidão de famintos assistia à cena. Parecia um clube ruim. Lembrava mais o inferno.

Tenho sérias dificuldades com gente que quer o céu só para si e para sua turma. Eles batem no peito e arrotam agradecendo o privilégio de estar do lado de dentro da cerca. Sentam suas ancas largas em cadeiras confortáveis enquanto miram, eternamente, aqueles olhos de fome do lado de fora:

- Antes eles do que nós. Brindemos à nossa sorte.

O céu que imagino não é assim. Para mim, céu começa quando a cerca acaba. Céu são coxões de frango e tortas de chocolate sem fim para os meninos barrigudinhos do sertão das Gerais. Céu é chocolate quente para quem quiser, em noites de inverno. É jaqueta quentinha para quem tiver frio. Amor e companhia para quem se sentir só. Ser parte de um grupinho que se aquece enquanto o resto do mundo sente frio e abandono eternamente não pode ser céu, parece o inferno.

Céu é paz de criança mamando na mãe. É a plenitude de ter o rosto do amado nas mãos. É a alegria do reencontro de velhos amigos, pai e filho, filha e mãe, irmão e irmã. Céu é quando o Chico recebe de volta a metade arrancada de si. É quando o trem do Milton, que viaja pra capital, pára na cidade de fim de mundo porque Pinduca acenou.

Para muitos, a idéia de um céu universal destrói toda a noção de justiça. Acho que estão confundindo justiça com vingança. A vingança perpetua a lógica injusta de que sempre precisa haver um vencedor e um perdedor. O que ela faz é apenas inverter a ordem no melhor estilo “um dia é da caça, o outro é do caçador”. Justiça não é transformar o pobre em rico e o rico em pobre, nem é dar a arma pra vítima atirar na cabeça de quem a matou. Nada disso é justiça; é vingança. Justiça mesmo é quando todos - ou são todos ou não é ninguém - recebem a misericórdia e a aceitação do Senhor de Todas as Coisas, lembrando que Ele mesmo, sendo justo e pleno, decidiu esvaziar-se de sua glória e viver neste mundo injusto, e para seu banquete convidou os mais desprezados seres da Terra, gente que não clamava pelo nome de Deus nem seguia as leis de Moisés, dando a entender que de sua mesa farta farão parte tantos quantos tiverem fome e sede.

Céu é choro e riso de arrependimento e é choro e riso de perdão. Céu é justiça e igualdade. Em um céu de verdade mesmo, se um ganha todo mundo ganha. Se perde, todos perdem. É o fim da baba do egoismo e da vingança. Céu que é céu não aceita cercas elétricas e pessoas famintas do lado de fora.

terça-feira, março 09, 2010

O dia em que o fantasma virou defunto

Bati a porta, saí pelas ruas cantarolando qualquer coisa em sol. Lá, do outro lado daquele trinco que só abre por dentro, jazia um fantasma defunto. Quem disse que fantasmas não morrem deveria ir àquela casa só para espiar esse um. Tudo bem que morreu faz pouco, ainda tem quentes as pontas de um ou outro dedo, mas as canelas estão frias. Já não respira, já não incomoda, já não assombra. Se parece olhar alguma coisa é porque ninguém se deu ao trabalho de cerrar-lhe as pálbebras. Pois que fique lá! Se feder, não saberei. Já não divido a casa com o dito morto e pouco se me dá se ali passar todos os séculos estirado no meio daquela sala sem mobília. Bati a porta e saí leve, cantarolando qualquer coisa entre si e dó. Minha canção é alegre, que não nasci para carpideira. É melhor mesmo que os mortos enterrem seus mortos. Quanto a mim, não paro de sorrir e de dançar livremente nos braços do meu amor.

(16/12/2009)

sexta-feira, março 05, 2010

O que não quero mais

Tem gente perguntando se perdi a fé em Deus. Não! O que perdi foi a fé na idéia que eu tinha de que Ele existe para consertar a minha vida. Minha espiritualidade, descobri bastante envergonhada, sempre foi uma tentativa de convencer Deus a mover o universo a meu favor.

Há muitos anos li uma tirinha em que o Pateta da Disney dizia: “À minha frente tenho o norte, atrás de mim está o sul. À minha direita está o leste e à minha esquerda está o oeste. E daí? E daí que eu sou o centro do universo!”. O que para mim não passava de uma boa piada, de repente revelou-me a mim como um espelho. O centro era eu.

Aumentadas sempre em escala logarítmica, minhas necessidades cerraram-me os olhos para a busca do próprio Deus. Alimentada por discursos inflamados de pregadores cuspindo promessas e garantindo favores em nome de Javé, minha fé individualista cegou-me para a beleza da mensagem e do exemplo do Cristo: tudo nele apontava para o Pai. Ele sequer ousou dar testemunho sobre si mesmo. Também não ordenou que anjos o descessem da cruz. Pois quero abrir mão de uma religiosidade que tente convergir céus e terra a meu favor. Sei que não será fácil, nem rápido, nem indolor.

Há momentos em que é preciso coragem para dizer: "Meia volta, volver!". Duvidar, voltar, rever, repensar, nada disso deveria ser considerado covardia ou insanidade. É preciso coragem e coração tranquilo para negar os já tão cristalizados modelos escravizadores. Jesus, nosso Mestre a quem deveríamos imitar, é a chave para abrir as algemas de uma espiritualidade rasa e individualista. Nele é negada toda idéia de que Deus existe para satisfazer nossos desejos e transformar seus seguidores em homens e mulheres poderosos, ricos, bonitos e bem-sucedidos na vida.

O carpinteiro de Nazaré não se encaixou no modelo de messias que Israel esperava: não os libertou do poder de Roma, não acumulou riquezas, não obrigou ninguém a segui-lo nem teve ataques de megalomania. Ainda assim, marcou para sempre a história da humanidade. Seus ensinamentos, sua candura e sua capacidade de amar e compadecer-se foram suficientes para que homens e mulheres de todas as gerações seguissem seus passos com beleza, mesmo quando atingidos pela mais excruciante dor. De todos os testemunhos que ouvimos, os mais transformadores não são os que apontam para salvamentos, mas os que ensinam o viver corajosamente - lembrando sempre que a coragem sem medo não é coragem, mas sandice. Prossigamos então com simplicidade, brandura e bravura.

Diante da pergunta se Deus não opera milagres, afirmo que a questão deveria ser outra: Eu devo depender dos milagres para ser amiga de Deus? Contudo confesso, sem me punir, que não sei como alcançar esse patamar de desprendimento. Só sei que é o inverso do que eu andava vivendo e reconhecer isso, embora não seja suficiente, liberta-me para novas descobertas, com a promessa de que Ele ceará comigo todos os dias e me amará eternamente, ainda que boa parte dos cristãos me tenha por herege porque me recuso a acreditar que Deus seja salvador apenas de mim e deles e do nosso umbigo e do nosso gueto.