quarta-feira, junho 16, 2010

Eu, mim e eu mesma

Eu, este montinho de matéria animada que atende pelo datadíssimo nome de Ana Cristina (coisa mais anos setenta!), há pelo menos duas décadas me faço perguntas bem estranhas. Sei que professores de etiqueta aconselhariam a esconder minhas esquisitices do resto do mundo, mas hoje deu vontade de sair contando para os outros – no caso, você.

São muitas as perguntas, mas tem uma que me gera sempre o mesmo riso idiota. É uma dúvida que até imagino ser óbvia demais, talvez universal, mas, ao se transformar em meu questionamento, já não é de mais ninguém: “Por que eu sou eu?”. Tipo, com seis bilhões de montinhos de matéria animada organizados em forma de seres humanos habitando o planeta neste exato momento, por que eu sou precisamente quem eu sou em vez de ser qualquer um deles ou algum outro que nunca tenha existido? Igualmente estranho, por que nenhum deles é eu?

Sabe aquela sensação de ser a única pessoa no universo que vê tudo como um longuíssimo filme em primeira pessoa? Não, você não sabe; essa pessoa sou eu. Você simplesmente faz parte do filme que vejo. Só eu sei o que é enxergar tudo a partir de dentro, com meus olhos. De todos os humanos que estão respirando agora, em algum lugar, eu sou a única eu. E não tenho direito a troca sequer por um segundo, nem ao menos para saber como é ver a mim mesma pelo lado de fora ou, tão bom quanto, enxergar algum outro pelo lado de dentro. Já imaginou? “Tá bom aí? Ah, então troca comigo um pouquinho que eu também quero”. Ou então, “É sério, eu estou com muita dor de cabeça, vamos trocar por alguns segundos para você saber”. “Ah, não gostei muito deste vestido. Troque aqui comigo para você ver como está muito mais bonita com o preto”. Coisa fantástica seria, por exemplo, ver o mundo por olhos japoneses. Ou da altura de um jogador de basquete de mais de dois metros. Mas não. Só posso ser eu, mim e eu mesma.

Já faz um tempão que eu fico pensando nessas coisas. Quase sempre que me proponho a meditar, fecho os olhos para tomar consciência do meu corpo, mas sou boba além da conta: começo a achar interessante que eu seja um animalzinho. Mamífero. Chorão. Capaz de quase qualquer coisa por uma barra de chocolate suíço ou um prato de camarões ao alho e óleo. E começo a rir sozinha, o que só piora as coisas, porque considero o próprio riso uma manifestação estranhíssima, pense bem. Se eu acho alguma coisa divertida, balanço o corpo e mostro os dentes e faço barulhinhos. Isso significa que estou achando bom.

A meditação, a consciência do riso como sendo pouco mais que um mostrar de dentes e um balançar de carcaça, tudo isso me leva indefectívelmente para a pergunta inicial: "Por que eu sou eu?". De um tempo para cá, porém, a coisa vem ficando mais complexa, embora esteja também cada vez mais divertida, em um estágio que nem consigo começar a explicar. Comecei a me perguntar, por exemplo, como seria se eu tivesse nascido Jesus. Deve ser muito bom ser Ele. E se eu pudesse sê-Lo por ao menos um segundo? Talvez para minha sorte e segurança mental, também tenho minhas coleiras pensamentais, por isso nunca consegui me aprofundar muito na tentativa de resposta.

Mas, sabe de uma coisa? Eu acho que Ele, sim, sabe como é ser eu. Diz até que mora aqui, comigo.


Nota da autora: este texto foi escrito como tentativa de dialogar com a crônica “Os outros”, de Antônio Prata:
http://blogs.estadao.com.br/antonio-prata/os-outros/