QUANDO ANTHONY GAROTINHO ESTEVE EM ITAÚNA
Quando Anthony Garotinho esteve em Itaúna, acho que no primeiro semestre de 2002, ele estava gordinho. Comia bem, sorria bastante e teve boa acolhida na terrinha banhada pelo Rio São João Acima. Pessoas de todos os bairros se amontoaram em volta de um palquinho na Praça da Matriz e não eram poucos os “Zaqueus” que se acotovelavam pendurados nos galhos das árvores para ouvir o discurso messiânico daquele evangélico que se aventurava pelas cidadezinhas do interior desenterrando votos. Salientei o fato de ele ser evangélico não porque o termo traga implicações em si, mas porque o discurso do moço se baseava quase que inteiramente nisso. Se era verdadeiramente discípulo de Jesus, ah, isto não me cabe julgar. Que era evangélico, estava na cara. Seu evangeliquês bem falado não deixava dúvidas. As palavras-chave estavam todas lá, enfileiradas, moldando o testemunho, tentando provar que ele era mesmo um enviado direto de Deus para concertar o país. Eu estava lá.
Seu discurso foi mais uma pregação. Usou toda sorte de alegorias para deixar a Palavra de Deus mais inteligível ao povo. Contou seu testemunho de conversão. Fez uso de toda sua técnica de oratória conquistada em anos de profissão como radialista. O prefeito da cidade era de outro partido político, mas estava lá. A população evangélica (eu incluída) batia palmas, feliz porque os altos cargos da administração local estavam representados ali e ouviam a Palavra de Deus. Sim, uma pregação.
O que ele propôs, naquela manhã de sol alto e céu limpo, foi algo parecido com uma teocracia nos moldes da antiga monarquia de Israel. Para embasar seu discurso, usou o texto bíblico que diz: “Quando os justos governam, alegra-se o povo; mas quando o ímpio domina, o povo geme.” (Provérbios 29:2). Teocracia é o sistema de governo em que o representante máximo da nação é reconhecido como um enviado direto de Deus, um mensageiro. No caso do Brasil em 2002, Garotinho seria o tal.
Mas o garoto se esqueceu de um detalhe, talvez porque não soubesse mesmo: a monarquia davídica em Israel não foi assim tão maravilhosa como querem fazer crer os exegetas e estudiosos fundamentalistas. A própria Bíblia nos mostra isso nos livros que se basearam na tradição do Reino do Norte, declaradamente anti-davídico. Já foram encontrados documentos provando a opressão que se instalou no governo de Davi, e, muito mais, no governo de seu filho Salomão. Eles conquistaram outras nações, o império cresceu, mas muitas vezes as nações conquistadas não aceitavam pagar tributos a Israel. A coroa passava então a cobrar mais e mais impostos dos próprios israelitas para manter o aparelho de Estado (peço licença para usar o termo Estado para falar daquele momento histórico). Era preciso manter a corte, os castelos, era preciso manter o exército, os sacerdotes, tudo, tudo, e com dinheiro de tributos. Na época não havia bancos, obviamente. O dinheiro era entregue diretamente no Templo. E o Rei, sendo representante de Deus, recolhia o dinheiro e aplicava no que achasse que devia, sob o conselho dos anciãos.
Outro detalhezinho: até mesmo o fundamentalista e determinista Abraham Kuyper, teólogo reformado que viveu até as primeiras décadas do século XX, reconhecia a impossibilidade de um governo teocrático. Ele era contra não apenas a idéia levada às últimas conseqüências, mas era contra o princípio em si. Se ele, sendo tão ortodoxo, não gostava da idéia, acho que isso me dispensa de tecer meus comentários. Mas vou dizer assim mesmo.
A idéia de aplicar a noção de “escolhido”, de “redentor político e econômico” aqui no Brasil, mais ou menos 3000 anos depois de Davi, soa um tanto quixotesca. Mas o Garotinho não pensa assim: ele gritou aos quatro ventos que recebeu profecias de mulheres e homens de Deus dizendo que seria presidente do país. Daí que podemos entender ao menos um pouco dos motivos de sua greve de fome. Penso até que ele esteja protestando não apenas contra a cúpula do PMDB, a quem acusa de traição, mas está protestando também contra os profetas e suas profecias (ou profetadas?), e, por fim, contra Deus. Mas, afinal, onde foi que Javé errou?
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