sexta-feira, março 03, 2006

Fome: na hora do Faustão, não!

Disse Dietrich Bonhoeffer que, se existe alguém passando fome, é porque existe alguém retendo alimento. Nem que seja alguém como aquela mendiga que a televisão mostrou há pouco tempo: quando entraram no lugar em que ela morava, depararam-se com cento e vinte e uma cestas básicas apodrecendo. Ela não aprendeu a repartir, preferia ver sua casa infestada daquele odor putrefato.
Reter alimento ou reter atenção ou reter solidariedade, nada disso deveria ser tolerado. Alguém bate campainha em minha casa e prefiro nem atender, porque decerto é gente pedindo qualquer coisa, tirando meu sossego... E não há nada que valha mais em nossa geração do que nosso sossego, nossa zona de conforto. Somos uma geração individualista por excelência. Ser feliz o tempo todo é o que se busca a todo custo. A todo custo mesmo. Não se aceita o sofrimento, é preciso sempre haver um motivo: o capeta, a igreja, a escola, o trabalho, o pai, a mãe, o vizinho, mas não nós mesmos. Não, nós não admitimos que falhamos. Nosso momento histórico afirma que nascemos para ser felizes e que qualquer coisa que nos tire do sossego só pode ser algo ruim. Uma campainha tocando às três da tarde de domingo, então, nem se fala!
E não importa que o outro esteja com fome. Importa, sim, que o bacanão quer descansar assistindo ao Faustão. Porque no dia seguinte a semana começa de vez e aí não haverá tempo sobrando. Nada contra descansar com a família num dia de domingo, ou na segunda-feira, que seja. Mas é preciso enxergar além do próprio umbigo.
Enquanto o outro espera por um pouco de comida, na tevê passa um comercial do carro do ano, agora com um apetrecho a mais. E, apesar de não haver nada na despensa que possa ser dado ao pedinte, porque a vida não está fácil, logo planejamos a compra do carro anunciado, do celular colorido, da roupa da moça da novela... Mas não lhe damos sequer um biscoito. Na nossa despensa ninguém mete a mão!
O individualismo é a pior doença da nossa geração, e já se alastrou por todos os cantos. Filosofias de auto-ajuda, receitas de dez passos para ser feliz, e pisa na cabeça de um daqui, e pisa na do outro ali, e algumas igrejas vão expiando as culpas e dizendo que têm a fórmula da felicidade. Uma placa diz: Chega de sofrer! Algum desavisado entra e acha tudo lindo, mas ao primeiro sinal de que o sofrimento não acabou, acaba acreditando que Deus é um traidor, um brincalhão.
Em meio à prática religiosa individualista (aquela do Deus a serviço do homem) alguma coisa ficou esquecida: Deus tinha milhões de formas para agir, mas escolheu usar gente para curar gente, pessoas para cuidar de pessoas, mãos para alimentar os famintos. Quando me tranco em um mundinho só meu e me esqueço do resto, então me fecho para o propósito da Criação. Deus não criou um planeta Terra para cada ser humano, embora eu creia que Ele tivesse capacidade para fazê-lo. A Terra é uma só para todo mundo e todo o alimento que temos está aqui. As pessoas são muitas, e o tempo é curto, e o sofrimento aumenta cada vez mais, mas não temos para onde ir. É aqui mesmo que ficamos, e chega de eu, só meu, só pra mim...
O caminho para a felicidade é o oposto do que nossa geração está buscando: é a vida em comunidade, a noção de sociedade solidária, lugar de relacionamento. Deus é relacionamento: Ele é três e Ele é um. Nenhuma das pessoas da Trindade é superior às outras. Se um sofre, todos sofrem. Se um se alegra, todos se alegram.
Mais uma vez, devo dizer que também luto contra o individualismo, contra a preguiça de atender campainha para dar de comer a alguém que necessita. E acabo retendo alimento. Quando deixo de compartilhar o que tenho e logo em seguida faço uma comprinha básica para suprir meus caprichos, eu me torno, sim, uma grande responsável pela fome no mundo. Assim tem nos ensinado o Professor Teólogo Aziel Gusmão.

“A lição sabemos de cor. Só nos resta aprender”.