sexta-feira, abril 22, 2005

Berenice quer ser bailarina

Berenice quer ser bailarina. Seu quarto é vazio, melhor assim: o chão nu e as paredes pálidas combinam com os cenários que ela imagina para cada balé. Sua janela não tem vista pra lugar algum, a não ser para a área de serviço de um dos apartamentos empoleirados no prédio da frente. Se reparar bem, entre os dois endereços dá pra ver um pedacinho da rua. De vez em quando passa por ali alguma babá empurrando um carrinho, aí chega um caminhão, estaciona, e, da janela, a menina aproveita pra ler as figuras impressas na lataria. Berenice espera pelo ano que vem para aprender a escrever cartas, e então contar a alguma bailarina sobre seu sonho de dançar, e pedir para ouvir histórias de viagens, de turnês, e quem sabe ir também...
Na escola, ela dança pelos cantos fingindo não ver que alguém ri-se dela, e gira fingindo não perceber que o menino feio de manchas na cara ama seus passos de dança e sonha casar-se com ela. Aproveita as aulas para na cabeça ensaiar seus passos, e, na cabeça, cria coreografias inteiras ao som da voz monotônica do professor. Ele, de pé, parado, peça de cenário, explica alguma coisa que nem faz muito sentido, afinal, não seriam Tiradentes e Jesus o mesmo cara, de longas barbas e pouco banho?
Em casa ela roda pelos cômodos, e não quer outra coisa. Pra que tomar banho se a paga de cada dança é exatamente o corpo quente e suado? “Minha filha, já pro banho!”. Atravessa a sala, a música de abertura da novela dura poucos compassos, impossível compor qualquer coreografia. Melhor mesmo são as gotas que caem do chuveiro, generosas, organizando-se em acordes bonitos. Berenice já até criou um balé: a personagem principal é uma menina que quer ser bailarina. Seu quarto é vazio, melhor assim: o chão nu e as paredes pálidas... Aí desliga o chuveiro, grita a mãe pra trazer a toalha, atravessa a sala com os cabelos respingando o chão, entra em seu quarto cor-de-rosa cheio de bonecas e penduricalhos, nada combina com os cenários que ela imagina para cada balé. A menina adormece e continua sua história...
O roteiro de sua peça tem qualquer coisa que não funciona, ela não suporta aquela janela e aquela área de serviços atrapalhando tudo. Já aprendeu a esvaziar seu quarto e imaginar cenários incríveis, mas não consegue desfazer-se daquela janela, sua única janela, única ligação com o mundo real... Desligar-se daquela janela seria perder de vez o contato com a realidade, e isto não poderia ser aconselhável. Mas, tudo o que ela deseja, enquanto sonha, é ver-se livre dela, é substituí-la por estradas sem fim, e um caminhão de circo, e gente alegre... Melhor não. Melhor não?
Dia após dia, Berenice imagina como seria se finalmente se livrasse daquela janela e já não dependesse das figuras nas latarias dos caminhões, se já não dependesse das roupas coloridas penduradas no varal da área de serviços do apartamento em frente. Ela fica imaginando como seria se finalmente conseguisse conhecer, mesmo que em sonho, alguma trupe de circo que a levasse para ver lugares, e alguma bailarina que lhe ensinasse passos novos, e algum trapezista de manchas no rosto que a esperasse crescer para se casar com ela... E se ela pudesse seguir com eles? E se pudesse finalmente escutar os aplausos de toda aquela gente que habita seus sonhos, dia após dia, cujas palmas nunca emitem som?
Berenice é uma menina que quer ser bailarina. Seu quarto é cor-de-rosa, cheio de bonecas e penduricalhos que não combinam com os cenários que ela imagina para cada balé. Da janela dá pra ver um pedacinho da rua. Qualquer dia destes, pode esperar, qualquer dia destes estaciona ali um caminhão de circo pra buscar Berenice.