O Menocchio que há em nós
Agora é assim. Quem quiser conhecer a história, que abandone os livros tradicionais, aqueles que fornecem dados, datas, grandes nomes, bravos feitos. Que passe a ler diários pessoais, cartas, contratos de compra e venda, recibos, cadernos de balanço comercial. A coletividade já não diz tanto, a não ser quando representada pelo indivíduo.
Não estou dizendo isso por dizer. É uma tendência fácil de ser percebida. Um exemplo simples: os programas e reportagens visando o turismo mudaram de cara. E não só mudaram de cara, mas também de essência. Mas há os que se recusam a mudar. Explico.
“Roteiro de Minas”, produzido e apresentado por Barbosa Neto, começou a ser veiculado semanalmente há mais de vinte anos, pela Band Minas, com duração de trinta minutos. O programa leva o telespectador a cidades mineiras, das mais conhecidas às mais pobrezinhas (aquelas cujos hotéis não costumam receber outros turistas além dos caminhoneiros que por ali passam). São reportagens nada moderninhas. A narração é tradicional, no melhor estilo “documentário de viagem do Jacques Cousteau”. Cada edição começa invariavelmente falando da localização da cidade, mostrando imagens do trevo e de placas indicativas para as cidades vizinhas. Ficamos sabendo também de vários dados estatísticos do município, tudo isso enquanto assistimos a imagens de pessoas felizes passeando por algum parque ou pracinha. Mas não há espaço para saber o que elas pensam, como se sentem. Boa parte dessa meia hora se dedica às obras realizadas pela prefeitura e também às indústrias e empresas ali presentes. Assim, Barbosa Neto nos mostra cada cidade do ponto de vista do município, como instituição mesmo.
Os programas atuais não carecem de maiores descrições. Todos conhecem, todos assistem, nem que seja uma reportagem no Fantástico, com o Zeca Camargo ou a Glória Maria em algum lugar esquisito e maravilhoso da Terra. Eles mostram o cotidiano das pessoas, fazem perguntas banais, partem do individual para o coletivo. O apresentador é quem conduz nosso olhar, com aquela estética da câmera seguindo-o enquanto caminha, ofegante. Ele pára para descansar, toma alguma coisa, mostra alguma coisa, conversa com algum morador do local. Nada de muitos dados e estatísticas ou descrições formais. O foco é o morador, seus costumes, sua maneira de tentar ser feliz.
Na disciplina História, há o movimento de resgate do indivíduo. É a chamada História do Cotidiano, ou Micro-história. Um exemplo é o excelente livro “O Queijo e os Vermes”. Sua interessante narração do cotidiano, da vida e do julgamento do moleiro italiano "Domenico Scandella, conhecido por Menocchio" analisa o processo inquisitório, partindo da vida cotidiana nos campos italianos do século XVI até chegar aos pensamentos específicos deste interessante personagem. Mas, em casos assim, é importante que o leitor tenha em mente que se trata de micro-história e que, portanto, não é aconselhável passar logo para a generalização.
Diante da visão fragmentada que a cultura pós-moderna tem da realidade (há quem diga que a realidade nem existe), era mesmo de se esperar a superação do coletivo pela individualidade representativa. Isto vale para as mais diversas áreas do pensamento. É uma tendência da atual geração. Mas, se for verdade que a história se comporta como um pêndulo, levando tendências para depois trazê-las de volta, podemos esperar que o coletivo volte a ser mais importante. Acho até que Copa do Mundo será um momento assim, coletivo. Mas, veja só, pela televisão já ficamos conhecendo os detalhes da vida do moço suíço que está trabalhando como motorista da Seleção.
Será que os netos dos nossos netos também procurarão conhecer os detalhes de nossas vidas ao estudar a nossa história? Ou será que, até lá, o tal pêndulo histórico já terá varrido o interesse deles pelo pequeno mundo que cada um de nós é e representa? Pelo sim, pelo não, é melhor você não apagar seus e-mails nem rasgar suas cartas e extratos bancários!
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