O poleá
No vigésimo dia de seu terceiro ano trabalhando como Papai Noel em uma loja de brinquedos, Tião Lamparina resolveu que era hora de compreender o tal “espírito do Natal”. Lamparina era seu apelido de moço, quando seus “moedores da boca” ainda eram branquíssimos e ele, muito alegre. Um dia faltou luz, alguém contou um caso de assombração, Tião soltou uma gargalhada e, mesmo no escuro, podiam-se ver seus dentes, o que lhe valeu o apelido.
Papai Noel de loja de brinquedos não faz muita coisa além de sorrir e tirar foto com criança, distribuir bala, sentir calor, essas coisas. Daria tempo de sobra pra investigar o espírito do Natal. A primeira cliente a trazer seus filhotes, porém, era uma moça mal-humorada, crente talvez (o cabelo e a saia abaixo do joelho a entregavam), e logo arrastou as crianças para longe do bom velhinho, resmungando qualquer coisa e, por último, um sonoro “Que São Nicolau que nada! Eu quero é Deus!”. Qualquer que fosse seu credo, ela não foi gentil. Aquele não podia ser o espírito do Natal e, especialmente nesta época, não se convence ninguém de nada por meio de xingos e esbravejos. De qualquer forma, Lamparina matutou ali um tempo sobre o que acabara de ouvir.
Enquanto a clientagem ainda não dava as caras, folheou um jornal. Leu um artigo que dizia que o comércio matou o Natal e que tudo virou consumo e que o aniversariante foi esquecido e blá, blá, blá. Pensou ter aberto o jornal do ano anterior, ou do anterior ao anterior, ou de qualquer outro ano. Tentou adivinhar o que viria na página seguinte: uma enquete com pessoas da comunidade dizendo o que esperavam para o próximo ano. Lá estava! Rá! Aquele ali dizia que queria paz, saúde, honestidade... Lamparina reparou bem na foto. Era seu vizinho, amigo e companheiro de TV a gato (TV a cabo puxada por meio de “gato”).
Entre uma balinha e um sorriso, um suspiro e um ímpeto de tirar a roupa calorenta ali mesmo, ele ia divagando, tentando captar o espírito do Natal.
No presépio, olhou o cocho vazio esperando a chegada do menino. Lembrou-se do primeiro cartão de natal que recebera. A mensagem de sua tia encomendava que o Menino Jesus o abençoasse no Natal e no ano novo. Na época ele nem pensou que o Menino Jesus já não era menino, que já tinha crescido, morrido e ressuscitado. Bobagem. Bom mesmo era receber um cartão só dele, só para ele. Sentiu-se importante demais.
A frase da moça mal-humorada passou o dia ecoando em seus ouvidos: “Que São Nicolau que nada!”. No final da tarde, um mocinho vestido de punk passou por ele e cantarolou uma música dos Garotos Podres: “Papai Noel fdp, eu quero matar aquele porco capitalista!”. Lamparina sentiu uma pontada de raiva, mas não teve prazo de se ressentir por muito tempo: olhou-se no espelho e não gostou do que viu, aquele pacote vermelho com barbas de algodão.
E, enquanto ele maldizia o personagem que interpretava, uma menina e seu irmãozinho se sentaram em seu colo. Alegres, graciosos, dentes alvos... Entre beijos e abraços, perguntaram-lhe o que iriam ganhar no dia do Natal. Sem resposta, Lamparina soltou seu “Ho ho ho!!”, e calou-se. Mais uma balinha, mais uma criança, mais um minuto pensando e o termômetro da rua respondia que o sol tinha dado sossego e a noite já tinha botado banca. Era hora de ir embora.
No vigésimo primeiro dia de seu terceiro ano trabalhando como Papai Noel em uma loja de brinquedos, Tião Lamparina resolveu que era hora de compreender o tal “espírito do natal”. E, de tanto pensar e repensar, de tanto tentar entender o que só se poderia sentir, Lamparina era como o poleá de Machado de Assis, que esmagou a ‘mosca azul’ a fim de conhecer-lhe o mistério da beleza. “Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, rota, baça, nojenta, vil, sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela visão fantástica e sutil”.