Semana passada, eu ia passar a noite no hospital com meu tio e parei antes em um supermercado. Resolvi comprar algo para ler. Em meio a livros de auto-ajuda, culinária e autobiografias de gente que ainda não passou dos 30, encontrei
“Os contos de Beedle, o Bardo”, de J.K. Rowling, autora de Harry Potter. Comprei. Passei a madrugada lendo. O livrinho é composto por 5 contos e muitas lições de moral.
No conto “O bruxo e o caldeirão saltitante”, o filho de um bruxo muito caridoso recebe por herança o caldeirão que seu pai utilizava para ajudar pessoas com sua magia. O filho opta por não continuar o trabalho do pai e o caldeirão então passa a apresentar os mesmos sintomas das pessoas a quem seu novo dono negou ajuda. Ao ser perseguido pelo objeto, atormentado dia e noite, o jovem finalmente se dá por vencido e decide tornar-se também um bruxo caridoso, aplacando, assim, a ira da panela justiceira.
Em vez de classificar o conto como bom ou ruim, procedente da luz ou das trevas, não fiz juízo de valor. Preferi o exercício de buscar algumas conexões entre o que li e aquilo que vem sendo anunciado e vivido em tantas comunidades chamadas cristãs.
Da mesma forma como o jovem bruxo foi praticamente forçado a fazer o bem ao próximo como única forma de acalmar o poder que poderia destruí-lo, muitas igrejas ditas evangélicas esparramam a notícia de que a única maneira de escapar do mal é fugir para dentro do templo e participar das campanhas e dar o dízimo. O que atrai essas pessoas às reuniões de oração
não parece ser a possibilidade de experimentar Deus ao tornar-se participante da mesa posta, ao fazer parte de uma comunidade que existe para servir. O que leva muitas e cada vez mais pessoas ao lugar físico chamado Igreja é a crença de que o poder (bom) mais poderoso do que o poder (mau) que acreditam ameaçá-los habita ali e só se disporá a protegê-los caso se posicionem do “lado certo”. As regras estão postas: quem obedecer à lista dos “faça” e “não faça” está a salvo. Cada ato de desobediência abre um buraco na redoma protetora, aí o mal tem seu passaporte carimbado, e entra.
Deus, entendido assim, deve ser conquistado e convencido a ficar do nosso lado. Apresentado dessa forma, Ele já não é amor como fonte primária, mas seu amor surge como resposta a estímulos de oração, ofertas financeiras e nossa disponibilidade para participar das reuniões no templo. O que Deus faz ou deixa de fazer passa a ser reflexo de nossa postura na Terra, ou seja, nossa capacidade de obedecer a regras, focar o pensamento e enviar ondas de fé ao alto, de modo a cutucar a barra da saia do dono da bênção e convencê-lo de que é chegada a hora de agir.
Tal lógica é incrivelmente parecida com o modo como antigos povos percebiam o divino. Tanto a idéia do deus do clã (que protege a turma que lhe rende culto) como a personificação de forças da natureza como se fossem fonte de poder divino, alimentam essa engrenagem de retribuição em que o divino não é agente, mas reagente. Ed René Kivitz comentou, recentemente,
no púlpito da Igreja Batista de Água Branca: “Nos tempos mais remotos, nossos antepassados adoravam o sol, o trovão, o mar, o Leviatã, as florestas e tudo aquilo que para eles era uma expressão de poder. Quando reconheciam no universo algo poderoso, tendiam a adorar essa fonte de poder ou esse poder. E por que adoravam? Porque desejavam que esse poder lhes fosse favorável. Porque não queriam ser destruídos, mas sim abençoados por esse poder”.
Em tempos recentes, não me lembro de ter conversado com alguém que adorasse o sol ou a lua. Não conheço ninguém que acredite que a dança da chuva vai resolver o problema da seca no nordeste brasileiro. Mas já conversei com centenas ou até milhares de pessoas que acreditam que Deus funciona na base do cutucômetro. Não, não quero diminuir o valor da oração. Eu acredito na importância da oração. Mas isso é assunto para outro texto. O que quero dizer é que a lógica está invertida.
Deus nos amou primeiro. Insisto, o amor dele é agente; o nosso é que é reagente. Nosso amor por Ele e por tudo o que Ele criou é que deve acontecer como reflexo do amor que é o próprio Deus. Mas Ele não nos força a amá-lo. Ricardo Gondim afirmou:
“É impossível forçar alguém a livremente amar. Forçar e amar são contraditórios, um esvazia o outro”.
Daí ficam algumas perguntas: e se o filho do bruxo do conto de Beedle, o Bardo estivesse lidando não com uma panela mágica, mas com o Deus que nos foi revelado em Jesus, será que ele seria atormentado dia e noite, ou sua opção seria respeitada, ainda que isso fosse entristecer o coração do Criador? E, pensando nesse Deus, Pai de Jesus: e se as pessoas fossem ao templo não porque alguém disse que ali é seguro e tem distribuição de bênçãos, mas porque lá está reunida uma comunidade que reconhece o amor de Deus? E se cada membro da comunidade oferecesse seu dízimo não porque acha que receberá de volta 100 vezes mais, mas por suspeitar que seu dinheiro possa fazer diferença na vida de algum necessitado? E se, de repente, o mundo inteiro descobrisse que nada do que se fizer ou deixar de fazer pode aumentar ou diminuir o amor de Deus por suas criaturas? E se todo cristão e aspirante a cristão entendesse que o dia mau vem para todos, que o sol brilha igualmente sobre justos e injustos, mas que, apesar de tudo isso, vale a pena servir a Deus apenas porque Ele é Deus? E se um dia descobríssemos que Deus não mandará anjos para consertar nosso carro estragado na encruzilhada, tarde da noite, nem abrirá o mar para que passemos, mas apenas se sentará ao nosso lado (e ao mesmo tempo dentro de nós) e dirá: “Estou aqui com você. A sua dor é a minha dor. Acredite no Jorge Drexler quando ele canta que
existe uma luz do outro lado do rio. Reme, reme, reme... E verá que o caminho pode ser bonito, mesmo quando for feio”. Será que as pessoas gostariam de um Deus assim, ou o pregariam em uma cruz, como se uma vez já não tivesse sido bastante?
Pensando sobre essas coisas, olhei meu tio no leito. Segurei sua mão e, em voz alta, agradeci a Deus por Sua presença. Tio disse amém. E o dia amanheceu, sem promessa de cura. “A minha graça te basta” (
2 Co 12:9)
Ana Cristina Mendes Gontijo
21/05/2010