quarta-feira, janeiro 19, 2005

Entre o Morro e a Classe Média

Somente a Av. Antônio Carlos e o conjunto habitacional IAPI separam o bairro São Cristóvão – onde estudo – da Pedreira Prado Lopes, uma das comunidades de maior índice de criminalidade da capital mineira. Ano passado, era setembro, resolvi atravessar a avenida e almoçar no Restaurante Popular que fica logo ali, no pé do morro. Fila de dobrar quarteirão, sol na moleira, quarenta minutos até chegar minha vez. Na fila, um moço me falou que eu tinha cara de filha de doutor, veio logo assuntar pra ver se eu estava atrás de voto. Respondi que só queria provar a comida. A moça de trás contou cinco reais, família grande, ela e mais três meninos e mais uma menina, sua vizinha. Ela ia pagar o almoço da menina, mas não parecia gostar muito da idéia: “A folgada da sua mãe não quis fazer almoço hoje?”. A menina explicou que sim, mas a comida não deu pra todo mundo. Eu tinha uma nota de dois, sorri para ela e fomos conversando, fazendo amizade. Aprendi o nome de cada um, mas agora já não lembro. Família bonita, os meninos muito educados, todos bem pequenos, queriam saber de onde vim, o que estava fazendo ali. A vizinha era um pouco maior, falou que se tivesse um real todo dia, todo dia almoçava lá. Tinha carne gostosa e um copão de Coca-Cola. Tive pena dela, eu, com meus valores de moça classe média que aprendeu que para ser feliz tem que ter dinheiro para ir a bons restaurantes, freqüentar shoppings e vestir moda de novela.
Não tinha cara de mais de oito anos, a menina. Seus olhos é que dosavam inocência e experiência. Tinha jeito de menina sapeca e tinha jeito de menina sofrida. E, como que para aliviar minha culpa de sentir que minha vida era melhor que a dela, eu a fiz prometer que não sairia da escola enquanto não completasse os estudos. Ela fez que sim com a cabeça e ao mesmo tempo falou que não gostava muito de estudar. Deu vontade de explicar, de uma vezada só, que escola muda a vida da gente, que lá a gente aprende que tem um monte de portas para entrar. Ela olhou para a fila pra ver se já estava chegando nossa vez. Como argumentar? Eu me senti tão pequena! E entendi que eu é que estava presa demais à minha forma de olhar e não enxerguei que a marginalidade que invade os lares nas favelas em nada é mais prejudicial que o mundinho em que se fecham os filhos da classe média, com seus videogames e preconceitos e suas visões distorcidas do que pode gerar felicidade. O morro não tem escolas boas o suficiente para oferecer portas melhores que a da criminalidade? A classe média não tem escolas que ensinem outra porta que não a do consumo?
Por quase um segundo, pensei em procurar o centro de convivência da Pedreira e me oferecer para iniciar um grupo de dança com as meninas de lá. Aí chegou minha vez na fila, almocei com meus “amigos”, tomei o copo de refrigerante e segui para casa, irremediavelmente egoísta, pensando na blusa que queria comprar para estrear no fim de semana. Teve gente que falou que eu não devia ter ido lá. Por quê? Pra não ter que ver que a doença deles não é diferente da minha? Não devia ter ido lá porque eles são perigosos? Eles é que deveriam ter medo de mim, porque sou parte de um grupo social doente, que há muito tempo perdeu a noção do que é solidariedade. Quando me sinto ameaçada por alguém de roupa feia vindo do outro lado da rua, mudo de passeio. Em nome do meu medo, eu mudo de passeio!... Eles é que deveriam ter medo de mim!

terça-feira, janeiro 11, 2005

Texto de Estréia

Eis o texto de estréia (em primeira mão). Só espero que Renilton, editor da Folha do Povo, não fique zangado por eu publicar o texto aqui antes mesmo que saia lá. O segundo texto já está pronto, mas acho mais prudente esperar um pouco antes de postá-lo aqui...

NOTAS DE APRENDIZ

Notas de Aprendiz não é desses projetos que nascem e passam anos engavetados, aguardando ser levados a algum editor de jornal que os publique. Pelo contrário, hoje mesmo surgiu, hoje mesmo levo o piloto para que Renilton veja se é pra dar mais corda. Não sei o que eu poderia acrescentar na vida de quem porventura esbarrar comigo por aqui. São notas de uma aprendiz. Aprendiz de escrita, aprendiz de vida.
Escrevo sobre o que me vem à cabeça, ainda não sou tão madura a ponto de saber ordenar direito, em escala de importância, as coisas que penso – ou que deveria pensar. Penso, escrevo, não necessariamente nesta ordem. E ainda não consegui livrar-me do mal que é falar mais do que escutar. Por causa disto, já dei com os burros n’água umas tantas vezes, coisa típica de quem está aprendendo. Eu devia ter uns 9 anos quando escutei, pela primeira vez, uma linda composição de Beto Guedes que diz: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender.” Sempre ouvi que aprendemos com nossos próprios erros. O que deveríamos tentar, e que certamente seria de maior prudência, seria aprender com os erros alheios. Mas a ironia é que, pra entender isto, tem que ser por conta própria.
Faz muito tempo que me meti a escrever, mas antes arquivava quase tudo sem que outros lessem. Depois de algum tempo, relia os textos, deletava a maioria. Dos mais antigos só me lembro de haver guardado um, que chamei de “Senhora Infância”. Não concordo com a maioria das coisas que estão ali, mas guardei por motivos que nem sei, acho que só pra voltar sempre à mesma certeza, a de que escrever é arriscar-se. Escrever é deixar opiniões documentadas, é estar presa a frases que terminam por descrever o autor, por mais impessoal que o texto possa parecer. Escrever é dar sentença sobre isto e aquilo.
Meu ex-professor no curso de Comunicação Social da UFMG, Anis Leão, disse no primeiro dia de aula que cinema só foi arte enquanto preto-e-branco. Guardei. Julguei. E percebi que falar também é arriscar-se, porque certas frases simplesmente não se apagam. Mesmo que ele tenha mudado de idéia, ainda guardo o tom de voz e a veemência com que afirmou: “Gosto de filmes antigos. Em preto-e-branco. Porque Cinema só foi arte enquanto preto-e-branco”. Mas ali estava alguém que sabe das coisas, gente que está algumas décadas de vida e dezenas de metros de livros à minha frente. E é com tristeza que reconheço que não me lembro de muitas coisas que nos ensinou em aula, além desta frase que meu cérebro, arbitrariamente, selecionou para guardar. Lembro também de tê-lo visto carregando uma pilha de caixas de bombons, entre as prateleiras do antigo Supermercado Popular. Foi muito bom saber que temos tanto em comum, mas acho que ele ainda não sabe. Anis gosta de cinema, Anis gosta de literatura, Anis gosta de ler a Bíblia, Anis gosta de escrever, Anis gosta de chocolate. Agora estou aqui, pleiteando um “buraco de página” ao lado dele, na Folha do Povo, e digo que daqui uns anos quero ser aprendiz como ele: cheio de coisas para ensinar, mas com postura de quem apenas começou a aprender.
Sobre o que será esta coluna? Sei não. Sobre um monte de coisas. Política, chocolates, literatura, coisas da cidade, música, casos antigos, futebol, filosofanças, e sobre nada, principalmente.
Porque é melhor assumir que vai haver dias em que não encontrarei nada de interessante a dizer.

Notas iniciais

Notas de Aprendiz surgiu pra ser coluna semanal de um jornal de Itaúna, cidade do interior de Minas Gerais. A idéia surgiu sexta-feira passada. Sexta-feira mesmo foi aprovada como coluna, hoje resolveu que ia ser blog também...