segunda-feira, maio 23, 2005

A culpa é minha

Amo tomar banhos de vinte e cinco minutos!
Dia desses, pela manhã, li na Internet um texto que dizia que meus netos provavelmente não poderão tomar banho todos os dias por falta de água, porque vovó gastou tudo no banho dela. Ao sair de casa, dei bom dia à moça que “varria” a calçada com água de mangueira. Sua amiga passou e parou para conversar. Não fiquei para conferir, mas, caminhando, de vez em quando olhava para trás e lá estavam as duas de prosa, a mangueira esguichando água tratada enquanto o mato no meio-fio agradecia o mimo... Oito horas da manhã, fiquei pensando que em algum lugar do mundo alguma criança estaria finalmente matando a sede de ontem, depois de ter passado a noite esperando que a mãe acordasse, caminhasse alguns quilômetros e voltasse com um balde de água barrenta na cabeça.
Temas ecologicamente engajados estão na moda. Pena que os discursos permaneçam discursos para grande parte das pessoas – e isto digo generalizando, porque sei que há aqueles que realmente se doam à causa ambiental. Pena que Pat fique quarenta minutos no banho antes de sair de casa com a blusa de grife estampando “Salve o Planeta” (provavelmente em Inglês), assinada por algum estilista famoso. Pena que eu não possa dizer nada a Pat, nem discursar, nem repreender, nem nada, porque ainda não consegui sequer me livrar totalmente do péssimo hábito de escovar os dentes com a torneira aberta. E pena que eu, aos vinte e sete anos, ainda tenha que escutar minha mãe pedindo que eu ensaboe vasilhas com a torneira fechada...
Se tudo fosse uma questão de estar na moda e falar sobre Ecologia, seria melhor que eu fizesse soar aqui frases de efeito, tentando convencer ao leitor de que ele é responsável pelo futuro do planeta. Mas minha luta é mais minha. Enquanto eu não conseguir primeiramente me convencer, como poderei argumentar? Qualquer liçãozinha de moral soaria como um discurso oco.
Reportagens sobre a seca se empilham em bancas de jornais. Ano passado um jornal de grande porte trouxe na capa a foto de um menininho pele e osso, barriguinha inchada, segurando um minúsculo copo de plástico, desses que usamos para tomar cafezinhos em consultórios e escritórios. O menino virara o copinho de cabeça para baixo na tentativa de aproveitar a última gota de água. Ao fundo, o cenário empoeirado gritava de sede. Num ímpeto ecológico (que durou quase uma semana), diminuí o tempo do banho, economizei energia elétrica, indignei-me perante a vizinha que ordenava à empregada que lavasse o passeio e o quintal todos os dias com água de mangueira. Quando já não me lembrava mais do menino da foto, voltei ao padrão pequeno-burguês de utilização de água.
Dados fornecidos pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp – indicam que um banho demorado pode gastar de 95 a 180 litros de água. Escovar os dentes com a torneira aberta consome, em média, 25 litros. Uma válvula convencional de privada chega a utilizar 20 litros de água em um único aperto. Uma torneira aberta gasta de 12 a 20 litros por minuto. Se estiver fechada, porém com vazamento (pingando), gasta 46 litros por dia. Lavar louças com a torneira aberta o tempo todo acaba desperdiçando até 105 litros. Lavar a calçada utilizando a mangueira como vassoura chega a gastar 300 litros. Uma mangueira ligada o tempo todo durante a limpeza do automóvel consome até 600 litros de água. Com um balde, são necessários no máximo 60 litros.
Sou a pessoa menos indicada para falar sobre Ecologia. Talvez por isto mesmo queira falar. E é bastante envergonhada que passo a admitir que escolhi o tema desta semana enquanto estava no banho, e, distraída com as idéias que me surgiam, acabei demorando mais do que devia. Quando percebi a incoerência, tive raiva de mim. Será mesmo intransponível o abismo entre o que eu deveria fazer e o que realmente faço? Será tarde demais para estabelecer uma aliança com meu planeta?
Terra, a culpa é minha!!

terça-feira, maio 17, 2005

Ética e Etiqueta

Ética e Etiqueta

Poucas coisas parecem ser tão nocivas quanto citar, de forma descontextualizada, frases que alguém disse ou escreveu, terminando por distorcer ou, no mínimo, camuflar a intenção do autor. A malfadada veiculação, pela Rede Globo, do debate final entre Lula e Collor antes das eleições presidenciais de 1989 demonstrou que uma edição jornalística tendenciosa, que seleciona frases soltas, montando e desmontando discursos de forma irresponsável, sempre se constituirá em instrumento nocivo no processo de formação da opinião pública.
Grande parte das chamadas seitas heréticas surgiu de interpretações irrefletidas de escritos sagrados, quase sempre a partir de frases descoladas de seu contexto. Incontáveis guerras surgiram de frases distorcidas atribuídas a este ou àquele governante.Mas não bastaram guerras e seitas escravizadoras. Não foram suficientes ideologias e teologias distorcidas. Agora até Carlos Drummond de Andrade foi atingido. Há algumas semanas, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, havia uma fileira de banners dependurados nas palmeiras. Anunciavam um evento de moda. Como propaganda, utilizou-se um poema do Drummond intitulado “Eu, etiqueta”. Pinçaram algumas frases que acharam adequadas ao evento, colocaram-nas entre aspas, enquadraram-nas em grandes anúncios que pudessem chamar atenção e, embaixo de cada frase, escreveram bem grande o nome: Carlos Drummond de Andrade. “Uau! Até o Drummond se interessava por moda!”, pode ter pensado algum desavisado. Não sei se ele, o Drummond, teria tido vontade de sair rasgando tudo caso ainda estivesse por aqui. Mas uma coisa é certa: fosse o poema citado integralmente – sendo ele na verdade uma crítica severa à padronização emburrecida gerada pelo mercado da moda – provavelmente muitas pessoas deixariam de comparecer ao evento. Para os que não o conhecem, o poema encontra-se disponível aqui no blog, em um dos textos anteriores.