sexta-feira, dezembro 31, 2010

Poisintão

Queridos meus,

2010 me entrega suas últimas horas feito um vilão em fim de novela, fingindo de bonzinho para ver se eu esqueço o que ele me fez. Tenho memória curta e coração derretido: perdôo!
Olho de soslaio e, juro, até consigo enxergar que este ano feioso, filho de uma ronca e fuça que me levou tantos amores e me fez chorar tantos lutos, não passa de um coitado. Ele tombou, eu venci. Renasci tantas vezes e - surpresa! - não me cansei de morrer e tornar a viver.
Antes, arregaço as mangas, percebo-me forte, espicho os olhos para tentar enxergar o próximo ano pela fresta que se abre. Vem aí a próxima década, aquela que me verá chegar aos 40 anos e que esconde tantos segredos atrás de cortinas que ficam atrás de cortinas. Olho para este punhado de anos a me convidar para o baile: "coreografe-me, invente-me, dance-me!" Convite aceito.
Meu par eu já escolhi. Ele é o mais belo, o mais sábio e amoroso. Ele é meu Deus, Senhor e Rei. Mas eu não sei enxergá-lo, por isso danço com suas sombras, suas formas, seus modos de me amar e de me fazer viva, humana, Ana. Descobri uma forma de senti-Lo presente, verdadeiramente presente: olhando cada um dos meus amigos, meus amores, que representam a face de Deus, a voz de Deus a me convencer de que, sim, vale muito a pena viver.

Obrigada, muito obrigada, meus queridos. Vamos juntos bailar o baile da nova década. Eu estou feliz!

Hoje li um lindo texto do uruguaio Eduardo Galeano e dedico-o a vocês, que são minhas chaves salvadoras.

Com amor e gratidão,

Ana Cristina, Ana, Cris, Tina, Tininha, Anita AnaCris, Cristininha, Binoca, Tineném, TinAugusta e Titi. Sim, todas elas eu. :o)


"Nos subúrbios de Havana, chamam amigo de minha terra ou meu sangue.
Em Caracas, o amigo é minha pada ou minha chave. Pada, por causa de padaria, a fonte do bom pão para as fomes da alma; e chave por causa de...
- Chave, por causa de chave - me conta Mario Benedetti.
E me conta que quando morava em Buenos Aires, nos tempos do horror, ele usava cinco chaves alheias em seu chaveiro: cinco chaves, de cinco casas, de cinco amigos: as chaves que o salvaram."

(Eduardo Galeano, "O livro dos abraços", página 237)

quarta-feira, dezembro 22, 2010

O aniversário de Jesus

Afogados em papéis de presente rasgados e brinquedos de um, de outro, meus três sobrinhos riam alto e confundiam quem deu, quem ganhou, me empresta aqui, brinca agora com este aqui.

Antes de abrir os presentes, tínhamos ceado. Teve oração e uma pequena homilia, mas eles não prestaram atenção, nunca prestam. Ficaram lá, vigiando o amontoado de pacotes coloridos. Eram especialmente atraídos pelas caixas maiores, as bem grandonas, e, vidrados, mal conseguiram engolir as dez garfadas de comida prometidas à mãe.

A farra foi até tarde, porque em noite de natal o sono não vem, desaparece, sai para dançar com a lua e volta só de madrugada, quando então brinca de derrubar um por um, começando pelos mais novos. Davi, o irmãozinho do meio, pediu que sua mãe se deitasse com ele. Antes, encheu a cama de brinquedos novos, mas teve o cuidado de abrir espaço para ela ao seu lado. Como todas as noites, foram orar. Ela propôs que agradecessem pela vida do aniversariante.

- Que aniversariante?

-Hoje é aniversário de Jesus.

Mudo de surpresa, depois de alguns segundos quis confirmar:

- Aniversário de Jesus?

- É. Aniversário de Jesus. Natal é para a gente comemorar o aniversário de Jesus.

Indignado, Davi pôs-se de pé em um pulo.

-É aniversário dele e nós não vamos?

sábado, dezembro 18, 2010

O banho

Ela estava no ponto de ônibus quando viu aproximar-se uma penquinha de crianças. Tinham as roupas puídas e a pele de um tom cinza empoeirado. Brincavam de dar tapas e pontapés, corriam, gritavam, voltavam e se morriam de rir.
Conversou um pouco com eles e descobriu que eram irmãos. Depois de alguns minutos, pediram uma moeda.
- Estou sem dinheiro. Mas toma uns biscoitos aqui, ó.
O mais velho pegou o pacote e os outros se ajuntaram. E no meio daquele cercadinho de pernas finas e joelhos protuberantes, mãos imundas, cabelos grudados e carinhas inocentes de meninos Jesus, o menorzinho deles, todo entusiasmado, anunciou a grande novidade:
- A gente quer dinheiro é pra comprar sabão. A mãe vai lavar nós hoje.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Já fazia um ano que, todas as noites, ouviam-se gritos apavorados vindos da casa ali na esquina, ali em frente, e barulho de objetos se quebrando, e berros roucos de um marido ensandecido.
Os vizinhos resolveram que era hora de fazer alguma coisa. Alguém correu ao bar e ligou para a polícia. O camburão demorou a vir e, quando enfim chegou, encontrou a casa em perfeita paz.
Do lado de fora, as muitas vozes se atropelavam para ver quem dizia primeiro, quem tinha ouvido mais gritos, muitos gritos, coisa horrorosa, tem que mandar capar ou prender.
Os policiais, que calados chegaram e calados continuavam, foram averiguar. Tocaram campainha. Perguntaram à mulher se era verdade que seu marido lhe batia já há algum tempo.
E de seus lábios trêmulos brotou uma vozinha fraca, quase um cochicho, o casulo de um grito:
- Ó, seu guarda. Bater ele não bate. Ele só me chuta e me enforca.

sábado, dezembro 04, 2010

A volta do clássico das multidões

América Mineiro para mim é sinônimo de pai. E pai, todos sabem, é coisa de primeira divisão. Desde já, devo esclarecer que sou atleticana. Muito atleticana. Demais, até.

Mas o América é o time do meu pai e foi por isso que, ao lado dele, vivi em 2009 a expectativa de que o Coelhão subisse à Série B e passasse a figurar entre os 40 principais times do Brasil. A final da Série C foi disputada no Estádio Independência, contra o Asa de Alagoas. Havia 38 anos que meu pai não ia a um estádio na capital mineira para ver seu time jogar. Naquela tarde de casa cheia, o sol brilhante anunciava que o América ressurgia.

Ingresso na catraca, corações acelerados, entramos com reverência no antigo Campo do Sete e nos misturamos aos outros dez mil torcedores que cantavam forte e bonito (que Kombi, que nada!). Diante daquele mar verde-negro, papai não conteve a emoção e deixou rolar algumas lágrimas. Abracei-o. Poucas vezes senti-me tão próxima daquele homem que me ensinou tanto do que sei. Durante o jogo, senti o que é ter seu sangue em minhas veias. Torci, gritei e me emocionei como se eu fosse ele, como se o time fosse ele, como se o mundo fosse nosso e aquele momento, o último de nossas vidas.

Na hora do gol, quanta emoção da torcida ao ver seu gigante despertar-se de um sono longo e profundo! Sim, o América Mineiro enfim honrava sua história e estava de volta à Série B.

O ano de 2010 não foi fácil para o Coelho, mas a luta valeu a pena. A base que disputou a série C foi mantida e os jogadores, guerreiros incansáveis, superaram seus limites e levaram o time a nova ascensão. O América Mineiro merece estar na elite do futebol brasileiro. E merece também a chance de aproveitar os jogadores que revela. Quero ver o time bonito quando conseguir segurar em seu elenco grandes estrelas como as que já surgiram em seus domínios: Tostão, Éder Aleixo, Palhinha, Ronaldo Luiz, Euller, Gilberto Silva, Evanilson, Alex Mineiro, Fred (atualmente no Fluminense), Danilo (atualmente no Santos), todos revelados pelo América.

Quero, sempre que vir o time verde-negro no gramado, lembrar-me daquela tarde com meu Antônio Gontijo. Lá, quando ele e eu nos abraçamos, campeões, senti algo difícil de explicar: meu mundo preto e branco se fundiu com o dele, preto e verde, e o novo ano se encheu de esperança. O resultado disso é que passamos 2010 torcendo juntos, eu e ele pelo Coelho, ele e eu pelo Galo, e até minha mãe passou a ver os jogos conosco.

Nem por isso a vida tornou-se mais fácil, mas, definitivamente, tornou-se mais bonita.

Ano que vem tem Galo e Mecão pelo Campeonato brasileiro. Ano que vem tem a volta do antigo clássico das multidões!